A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O TELEFONEMA

(Belvedere)

O telefone tocou e ao atender estava livre de ansiedades, pacificada em minh'alma.

Do outro lado, a voz vinha como uma melodia muito bem ensaiada. Arrepiada, rodopiei no tempo e no espaço até me posicionar adequadamente. Respirei fundo e por alguns minutos não consegui sequer balbuciar um "oi". A voz insistia e eu, como bicho acuado, me encolhia, cobrindo-me com o lençol... ai, Deus, o que fazer diante dessa coisa tão doida?

Após alguns minutos de silêncio mortificante, consegui dizer que estava bem. O que me trazia essa voz que julgara perdida no tempo? Ele vinha me falar do inusitado prazer que sentira ao ver minha foto estampada na página de um jornal. "Então, voltou a escrever?", indagou. Que tipo de amor realizara o milagre? O que me movia na escrita e até a me apresentar em público, coisa a qual sempre fui refratária, perguntava ele. Elogiando meus cabelos louros e minha boa aparência após tantos anos, perguntou se eu tinha filhos. Disse que não. Atribuiu a isso minha jovialidade. As pessoas têm cada idéia! Sempre quis ter filhos e eles jamais me tornariam uma velha precocemente, disse a ele, agora um tanto angustiada.

Falei que atualmente estava separada, após um longo relacionamento e sem nenhuma vontade de ter novas companhias. Sim, eu colocava uma trave entre nós, me protegia desse que havia sido o grande amor da minha vida e que optara por outra mulher, me fazendo mergulhar na mais profunda das dores. Ele parecia querer algo, mas não deixava transparecer nas entrelinhas... ora falava sobre sua casa noturna, e cheguei a pensar que estivesse querendo levar nosso grupo de músicos e poetas para uma apresentação na tal casa. Claro que era isso! Em momento algum deixara transparecer um interesse homem-mulher. Mostrava, sim, desejo de me ver pessoalmente, porém sem nenhum entusiasmo. Uma coisa meio morna. Cheguei a sentir que podia até esquentar a conversa um pouquinho, ora bolas!

Ele insistiu em um encontro. Disse ainda estar casado com a mesma mulher e que tinham três filhas. Era feliz. Aquilo me baqueou... no fundo preferia que dissesse o quanto era infeliz, triste, sem esperança... eu poderia ser seu rumo, quem sabe? Comecei a rir... Ele perguntou por que eu ria. Apenas respondi que não gostaria de revê-lo após tantos anos, pois me machucaria muito. Seria remexer em um passado que me marcou, me fez chorar demais... Perplexo, ele perguntou a razão de tanto sofrimento. Então falei sobre a sua opção por outra, quando fora ele o único amor de minha vida. "Mas você nunca disse que me amava", surpreendeu-se. Eu concordei. Nunca dissera. Por quê? Talvez por orgulho, por ingenuidade, por desesperança... não sei, mas nunca disse. Ele nada mais falou. Eu ouvia seu respirar. Suspiros... Aí, desejou-me boa-noite e desligou o telefone.

Sei que nunca mais voltarei a ouvir sua voz, para todo o sempre perdida na voragem do tempo.

  • Publicado em: 23/02/2004
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