Júlio impressionava com sua aparência de galã cinematográfico.
Na faixa dos cinqüenta, cabelos brancos, olhos azuis. O que estaria fazendo
atrás daquele balcão da peixaria? Sei que muita gente passou a
comer mais peixe desde que Júlio começou a trabalhar ali.
Sempre quis catucar essa história.
Seus gestos eram finos, e sua aparência européia intrigava-me.
Saía do contexto da maioria dos balconistas e ainda falava dois idiomas.
De onde viera? O que teria para contar?
Uma vez por semana, eu ia pessoalmente escolher o salmão. Vendo que eu
sempre trazia um livro na mão, perguntou-me sobre preferências.
Mais uma vez me surpreendi quando disse que o escritor favorito dele era Nabokov.
De Nabokov eu apenas li Lolita, nada mais; e sou leitora alucinada, compulsiva.
Assim como existe mulher que tem mania de sapatos, de perfumes, eu tenho de
livros. Toda semana compro um livro e certamente na fila de espera deve ter
uns dez para serem devorados... Como demonstrava extrema intimidade com livros,
ousei perguntar se conhecia Joyce. Ele respondeu imediatamente que, dele, o
que mais gostou fora Os Dublinenses.
Demorei seis meses para saber a sua história. Era descendente de italianos.
Sua família viera para o Brasil, fixando residência em São
Paulo, e dois anos depois ele nasceu. Com o passar dos anos, a família
enriqueceu com os negócios, embora ele mesmo não soubesse especificar
quais eram os negócios.
Ao completar 18 anos, foi fazer uma viagem à Europa. Amou tudo que viu,
e sua vontade era a de não mais retornar ao Brasil. Mas um ano depois
voltava.
Resolveu, então, que não participaria dos negócios de família
e faria o seu próprio caminho. Ingressou na faculdade de Direito e anos
depois formava-se. Logo estava casado e com um casal de gêmeos. Sua vida
era calma, normal. Embora desfrutasse de extremo conforto, seus pais ainda o
mimavam com doações descomunais. No íntimo, sempre desdenhara
aquele dinheiro como se não fosse parte de seu destino.
Por fatalidade, os pais morreram em um desastre aéreo no exterior deixando
para ele toda a fortuna. Sob o impacto da perda, contratou um advogado para
que tratasse dos bens materiais.
O tempo ia passando e mais as coisas pareciam enroladas. Após um ano,
concluiu-se que não havia bem algum. Tudo estava comprometido com as
dívidas do pai, que sempre fora apoiado pela esposa em suas extravagâncias.
Para ele nada sobrara senão uma profunda vergonha. A mansão onde
os pais haviam morado foi a leilão e logo ele decidiu mudar-se dali e
vir para o Rio de Janeiro, certo de que teria oportunidades variadas.
Um ano e meio de experiências fracassadas e perdas levou-o àquele
balcão de peixaria. Agora parece estar doente. Dizem que é cirrose
hepática.
Ultimamente já não o vejo tão galã, seus olhos perderam
o brilho, emagreceu... Vejo sua esposa ajudando-o, sempre meiga, compreensiva.
Ele diz que tem apenas uma gastrite e logo estará curado. O que percebo,
porém, é que cada vez mais Júlio se distancia daquele galã
que atraía a clientela por sua extrema beleza.
Continuo comprando meus peixes, e ainda ontem dei a ele o livro Abusado, que
já acabei de ler. Ele adorou e disse que admirava muito o escritor Caco
Barcelos. Segundo Júlio, um homem de coragem.
Fiquei pensando: Como chegou aqui? Uma peixaria...
Como viveu esses fracassos? Mas sobre isso nada diz. Quando tento adentrar nessa
parte da história, ele sutilmente corta.
Diariamente passo pela peixaria para ver se ele ainda está lá.
A cada dia o vejo mais magro, cansado, debilitado.
Nos últimos tempos, a vida de Júlio vem ocupando grande parte
de meus pensamentos. Sinto saudade daqueles olhos cheios de brilho, daquela
disposição, daquele Júlio que, hoje, é apenas sombra
do que foi...