A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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UMA SAUDADE DOÍDA

(Belvedere)

Estava deitada em minha cama, à tardinha, quando em uma espécie de devaneio vi passar diante de mim a imagem de Denise, com seus cabelos brancos e um sorriso todo feito daquela ternura que apenas espíritos que já superaram vaidades tolas e ambições desmedidas possuem.

Foi rápida a visão, mas durou o suficiente para trazer um mundo de lembranças que o tempo, por mais implacável que seja, não consegue diluir.

Denise era prima de minha mãe e tinha uma postura firme diante da vida, no entanto era de uma delicadeza que encantava naquele um metro e oitenta e dois de altura. Lembro que, muito jovem, eu fazia teatro com um grupo da escola e naturalmente levava para a minha vida diária aquelas encenações. Um dia, soube que meu namorado Beto, por quem era loucamente apaixonada, me traía com Mércia. Chorei, gritei e disse a Denise que iria me suicidar. Ela, então, carinhosamente levou-me a uma saletinha para conversar. Lembro-me bem: estávamos na casa de minha tia Maria José. Enquanto cachorros latiam pela casa, ela, alheia a tudo, dedicava sua atenção preciosa a mim. Saí da conversa pacificada, sorrindo; nem parecia a mesma!

Cumpro à risca os conselhos que me deu, quando naquele dia, no alto de seus cinqüenta anos e na sua dignidade tão apreciada, me disse enfaticamente: "Nunca se menospreze! Valorize-se!" Essa frase ficou em minha memória e serviu como diretriz para a minha vida.

Muitas vezes penso como seria bom tê-la ainda conosco. Sei que viveu o suficiente, mas pensar que não ouvirei mais aquela voz mansa, melodiosa, não passarei as mãos pelos seus cabelos tão brancos e sedosos, e nunca mais admirarei ao vivo aquela sua fortaleza que orgulhosamente desfilava pelos caminhos da vida... Teve dores, perdas, porém tudo suportou com exemplos enriquecedores.

Ai, coração, suporta essa saudade doída que me bate e me faz pensar que ainda a encontrarei na esquina, comprando pão quentinho para o marido Otávio, que também se foi...

Soluço, e como pesa a saudade! Fecho os olhos e durmo para ver se a encontro em um sonho bom e desperto sem essa dor no peito!

  • Publicado em: 19/01/2004
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