A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O Inesperado

(Belvedere)

Selminha impressionava pela educação refinada e pelos seus dotes artísticos. Era também de uma doçura que encantava a todos que dela se aproximavam. Com seus quinze anos, plena de vivacidade, declamava poesias de Cecília e de Bandeira como "gente grande"!

Pior era que não sobrava espaço para as colegas. Mal Selminha chegava, as atenções eram todas dirigidas a ela. Conversava sobre tudo e, quando certa vez, em plena festa de casamento pediram que dançasse, surpreendeu a todos, vestida de rumbeira, rebolando pra lá e pra cá! Ficaram boquiabertos com a desenvoltura da menina,

Não namorava. Dizia que só o faria depois dos dezoito anos. Mas, vivia conversando com o filho do farmacêutico, um rapaz meio bobinho, o Julio César. Nada tinham em comum, e nunca foram vistos sequer de mãos dadas.

Todo período de férias de final de ano, a sua família costumava ir para Petrópolis e lá ficavam três meses. O pessoal morria de saudade de Selminha. Não havia nenhuma outra igual a ela.

Quando ganhou o prêmio de redação instituído pela prefeitura, foi uma festa! Os vizinhos colocaram faixas na rua, houve banda recepcionando a entrega do troféu. Enfim, uma festa inesquecível.

Selminha ia envolvendo todos aqueles corações com sua ternura, inteligência, e alegria. Conseguia ser responsável e primeira aluna da classe. Alegre, participava de tudo, não se prendendo em casa, como outras ,que viviam para estudar. e nada mais.

Num final de ano, como de praxe, a família se preparou para mais uma viagem. Selminha se despediu com a alegria costumeira. Disse: - Pessoal, até março!

E os vizinhos iam vivendo aqueles dias, sem a sua presença, já acostumados que estavam.

Logo após o Natal, foram surpreendidos por uma notícia que, à princípio, acharam pura maldade: Selminha havia tido um bebê . Como aceitar o fato se estiveram com ela todo o tempo e nunca viram sinal de gravidez? Não, aquilo não era possível.

O pai de Millene, que era sua melhor amiga, decidiu ir à Petrópolis e checar a informação.

Ao chegar em casa, a rua inteira o esperava. Qual a notícia, perguntavam? Ele, naturalmente, disse: Renata nasceu! A filhinha de Selma Regina.

Mas como? As pessoas não entendiam. Explicou que ela havia escondido o fato de todos, até da família. Na hora de ir para o hospital levaram-na pensando se tratar de apendicite.

Todos ficaram cabisbaixos... não podiam entender a razão da mentira de Selminha, de sua traição. Imperdoável. Como ela pôde destruir aquela imagem que eles criaram?

Mais ou menos seis meses após o parto, ela envia uma fotografia de Renata, dizendo: Estou muito feliz. Nada fiz de mau. Eis o meu tesouro: Renata! Realmente, a criança era maravilhosa.

Pensando bem, quem construiu a imagem de perfeição foram os vizinhos. Ela nunca quis ser perfeita. Apenas era ela. Uma pessoa especial que ,por obra do destino, aos quinze anos, brindou toda a vizinhança com a notícia da chegada um bebê inesperado. Até nisso inovou.

Disseram que o pai da criança não era o filho do farmacêutico e isso tornou tudo mais difícil de ser assimilado.

A família dela resolveu mudar-se para o nordeste. Assim nunca mais vimos Selminha. Sequer pudemos conhecer Renata ,pessoalmente.

Dizem que , até hoje, mais de trinta anos após o ocorrido, ainda se conta a história de Selminha, naquela pequena cidade.

Muitos acham que é lenda.

  • Publicado em: 05/01/2004
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