A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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UM AMIGO DIFERENTE

(Belvedere)

Kaco era faxineiro do hospital onde trabalhei por alguns anos. Sempre fui de fácil convívio com os chamados "diferentes".

Para Kaco, que à noite virava Rebecca nos shows das boates da periferia, eu guardava restos de minhas maquiagens, perfumes, shampoos. Ele sempre me trazia geléia de amora, feita por sua mãe. Gostava de conversar comigo sobre o seu casamento com Erlison. Embora vivessem muito bem, o marido era muito assediado pelas mulheres. De fato, era um homem belo. Cheguei a conhecê-lo. Kaco, porém, dizia se garantir e não ter ciúme. Apenas achava um abuso essa insistência por parte das mulheres. Não compreendiam o quanto eles se amavam.

Era um exemplo de trabalhador. Assíduo, pontual e esmerado na sua faxina. Extremamente educado também.

Certa manhã, enquanto observava-o limpando as enfermarias, notei algo diferente. Sua bunda estava enorme! Chamei-o, rindo muito, e disse que ele havia colocado enchimento. Não conseguia parar de rir... Era um riso convulsivo. Ele dizia que não era enchimento. Era fruto de aulas de musculação. Aí piorou! Ri ainda mais! Ele acabou saindo e rindo como eu, mas continuou usando o enchimento, que no fundo caía bem.

Próximo ao Natal, presenteei-o com um perfume delicioso. Ele ficou eufórico e mostrou a todos, indo de andar a andar, ou seja, percorreu sete andares mostrando o presente. Assim era Kaco! Começou, então, a dizer com angústia que não sabia o que me dar no Natal. Eu, para aliviá-lo, disse que não queria nada. Apenas que continuasse a me trazer as deliciosas geléias de amora. Não existia melhor presente!

Em uma manhã chuvosa, escura, chego ao hospital e noto algo estranho. Burburinhos. Ouço o nome de Kaco e pergunto o que está ocorrendo. Ninguém me diz nada. Insisto. Então, contam-me que Kaco havia morrido. "Mas, como?", perguntei. Um cara na moto lhe dera dois tiros no peito. Segundo rumores, ele havia "dedurado" um pessoal da pesada e não houve perdão!

Exclamei: "Mas que vacilo de Rebecca!" E fui a uma pequena enfermaria desocupada, onde deixei que todas as minhas lágrimas descessem. Senti o gosto de sal... mas vinha misturado algumas vezes com o sabor de amoras adocicadas.

  • Publicado em: 03/11/2003
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