A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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AS CARTOMANTES

(Belvedere)

Leila conseguia transtornar qualquer ambiente por onde transitasse.
Primeiro, porque vivia a falar mal de Nelson, seu marido. Os comentários que tecia eram os mais desairosos. Roubos de peças íntimas dela, que supunha ser para suas amantes, falta de companheirismo, arrogância... Cultivava o desejo ardente de ver o homem morrer. De preferência de um enfarte agudo do miocárdio, como dizia de forma decorada.

Vivia em cartomantes que, previamente contatadas, lhe diziam da iminente morte de Nelson, para sua alegria.

Era uma mulher difícil. Tinha suas preferências em matéria de parentelas. Amava uns e odiava outros, sem qualquer explicação, tanto para o amor quanto para o ódio.
Sua personalidade era certamente contraditória. Era o tipo de mulher que ria e chorava ao mesmo tempo. Nunca vi ninguém igual.

No dia sete de setembro, o telefone tocou às seis da manhã. Assustei-me. Não podia ser nenhuma notícia alvissareira... Era minha amiga Nilcelena informando que Leila havia morrido, vítima de enfarte.

Nelson saíra como louco pelas ruas a pedir socorro, dizendo que ela apenas lhe pedira companhia, mas ele optara por jogar paciência. Ao voltar ao quarto a esposa estava morta. Vestia um camisolão e tinha bobes no cabelo. Ele ainda pensou, em sua ingenuidade, que Leila poderia ter se produzido melhor, já que certamente a cartomante teria previsto sua morte para breve... Ouvira falar sobre cartomantes um bom tempo de sua vida.

O dia sete de setembro foi chuvoso e, no sepultamento, fiquei pensando como as cartomantes podem enganar tão grotescamente.

Lá estava o "morto", assistindo, estranhamente aliviado, a partida de sua mulher... Quanto a ela, não sei como se sentia tendo sido ludibriada e roubada em suas ilusões pelas veneradas mulheres.

Olhei-a pela última vez. Usava roupa típica de senhora da década de sessenta. Não evoluíra em nada. Senti pena. Senti tristeza por ela ter desperdiçado belos anos da vida, correndo em busca de ilusões, comprando-as e esquecendo-se de viver.

Saí do cemitério vertical aliviada. Nunca mais ouviria as histórias sobre os possíveis acidentes de Nelson, profetizados tantas vezes, nem sobre seus enfartes agudos do miocárdio.

Hoje, ele está namorando firme a Iracema, uma viúva que mora no mesmo prédio onde ele sempre morou com Leila. Elas não se davam. Brigaram, certa vez, por causa de incompatibilidades em relação a gatos no prédio. Leila odiava felinos...

Será conquista nova? Quem pode dizer?
Que ao menos Leila, agora, deixe o marido sobrevivente respirar em paz. E nós também!

  • Publicado em: 15/09/2003
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