Minha mãe, Luiza Alice Arraes Moreira, morreu quarta-feira, dia 30, e
esta data passou a marcar definitivamente minha vida. Nunca deixarei de sentir
o aperto no peito, a sensação do chão fugindo sob meus
pés e minha raiz verdadeira que foi arrancada brutalmente. A vida parecia
negar-me o oxigênio que um dia propiciara quando cheguei ao mundo, depois
de abrigada durante 9 meses no útero materno. Senti-me asfixiada, sem
ar.
Alguma coisa arrastou-me para o velho fundo do poço, onde meu pai dizia
que às vezes era preciso permanecer durante uma fase para que se desse
a renovação interior e pudéssemos retornar mais amadurecidos
pelo sofrimento. E nele estou nesse momento para que possa sair intacta.
Pensei que minha mãe não morreria jamais. É claro que sabia
que isso era impossível. Mas ela sempre se manteve tão segura,
com uma coragem inquebrantável, força ilimitada e vigor admirável
que era quase impossível imaginá-la inerte.
Uma das lembranças mais remotas que surgem no meu pensamento como se fosse um filme de curta metragem foi constante nesses dias difíceis. Eu era muito pequenina e estava chegando do colégio no ônibus escolar quando minha mãe veio ajudar-me a descer.
Seus cabelos naturalmente lisos e negros encaracolavam-se num permanente temporário
e estava tão bonita que desejei cobri-la de beijos e abraçá-la.
Os lábios pintados discretamente contrastavam com a cor clara de sua
pele e refletiam um brilho imenso em seus grandes e expressivos olhos. Ainda
bem que nossas reminiscências são nítidas e jamais ficam
amareladas como as fotos.
Mamãe era culta, consciente de sua própria segurança, e
gostava imensamente de arte. Assídua freqüentadora de teatro ao
lado de meu pai não se eximia de dizer que prefiria o teatro ao cinema.
Suas opiniões eram declaradas com imensa transparência. Fora criada
num ambiente propício à música e literatura. Minha avó
era uma exímia pianista e meu avô um literato, escritor brilhante
e tudo isso ficara marcado dentro de sua alma.
Ao lado disso eu sentia sua autoridade, jamais falando alto, mesmo quando extremamente
zangada e ainda assim suas opiniões eram acatadas pelo carisma que ela
exercia em todos os níveis. E a certeza que sua condição
de mulher era extremamente admirada, pois fora criada por um homem que se posicionava
a favor do matriacardo e casada com outro que respeitava a mulher de uma maneira
que até hoje eu aprecio profundamente.
Sentava-se sempre ereta, como jamais consegui, a coluna perfeita e nunca a vi
deitando-se à tarde, mesmo em dias de domingo. Sua postura fazia-me lembrar
alguém em visita de cerimônia, porém eu sabia que mesmo
estando sozinha era esse o modo como ela convivia consigo mesma.
Era sensível sem ser exagerada e o lado racional conduzia sua vida com
mais eficácia, por isso pergunto-me sempre como a sensibilidade pode
me dominar a ponto de várias vezes ela ter chamado minha atenção
quanto ao sofrimento que isso podia me causar.
Teve oito filhos, cinco homens e três mulheres e todos nós sabíamos
que apesar de meu pai ser um intelectual notoriamente admirado e conhecido,
envolvente e de grande inteligência só uma pessoa conseguia dominá-lo
ou fazê-lo mudar de opinião: Minha mãe.
Não é que cedesse ou o fizesse para ficar mais tranqüilo,
ele realmente se convencia do que ela dizia e sempre me interroguei como mamãe
conseguia essa proeza, mas até hoje não consegui entender. Meu
pai não só era persuadido como passava a ser o grande defensor
daquela idéia, talvez mais do que a mulher e ficávamos boquiabertos
diante daquela proeza.
Durante sua vida teve grandes sofrimentos como a morte de meu irmãozinho
aos cinco anos e mais tarde nos últimos anos, de meu pai e mais dois
irmãos todos prematuramente levando em conta a média de vida atual.
Sofreu demasiado, e eu me perguntava onde tirava forças para seguir com
coragem apesar da saudade que expressava em lágrimas constantes, da dor
imensa que transparecia em seus olhos e da obstinação em continuar
vigorosa, conservando intacto cada um de seus conceitos.
Nunca deixava de dizer a verdade ou ser amável apenas para agradar. Era
amada por todos, principalmente pela família mesmo nos momentos mais
críticos e esse fascínio que ela exercia em relação
às pessoas era um mistério sedutor não só para os
filhos como para todas as pessoas que convivessem com ela. Uma mulher especial!
Tivemos vários conflitos, mas isso nada tem a ver com o amor que sempre
sentimos uma pela outra. Sempre a conservei no coração, embora
procurasse evitar na intimidade tocar nos pontos divergentes de nossos pontos
de vista. Sabíamos que acima de tudo o amor que sentíamos era
a sensação que realmente importava.
Teria muito conteúdo para descrevê-la com extrema minúcia,
mas a emoção faz-me parar num ponto indefinido e passar a sentir
suas palavras, os momentos que passamos juntas e refletir na força de
seu caráter em todas as situações.
E agora, seis dias após sua morte, com uma profunda saudade, desejando
desesperadamente vê-la e senti-la eu me pergunto em aflição
imensa e não acreditando na realidade dura e cruel: Mamãe morreu?
Eu não acreditava por mais que pensasse nisso e que soubesse que todos
nós vamos embora um dia e por essa razão volto a perguntar com
o vazio no coração: Mamãe morreu? E agora, meu Deus?
Somos cinco irmãos agora, perdidos em tristeza profunda, comentando nossas
vidas, falando sobre nossa mãe e pai, sobre a infância e adolescência,
as ruas de Copacabana testemunhas de nossos passos ou do tempo que nos faz reconhecer
perdas intoleráveis. Fixamos um os olhos dos outros e perguntamos perdidos
em realidade inacreditável: Mamãe morreu?