A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Uma noite de reflexão

(Vânia Moreira Diniz)

A noite está quente e acolhedora. Tudo à minha volta parece um mistério, quando a madrugada vai chegando e temos direito de recordar, pensar, rir ou chorar sem as preocupações que a luz do dia impede.

E fico aqui, sem vontade de mais nada a não ser olhar as estrelas que aparecem radiantes e uma vontade infantil de segurá-las e trocar confidências. Talvez isso seja uma regressão do espírito e procuro deixar que meus pensamentos prossigam sem a minha interferência.

O telefone toca e interrompe minhas reflexões, mas não imagino qual colega notívago estaria precisando conversar a essa hora e no entanto uma reminiscência antiga chega até meu coração.

Quando atendo ouço uma voz conhecida e reconfortante de uma amiga de infância que eu imaginava muito longe. E isso me anima, faz com que recordemos primeiro o som de nossas próprias vozes, curtindo um momento especial, daqueles que fazem com que a vida não seja tão árida.

Recordo a doce Luiza, minha companheira preferida, de estudos, confidências, passeios e divertimentos e nossas risadas alegres em muitos momentos de companheirismo.No entanto, sinto suas lágrimas através do telefone, as pausas eloqüentes e obrigatórias na emoção, o som tenso da voz e a incerteza com que discorre as palavras.

Pergunto, apavorada o que faz com que esteja tão angustiada, ela, a mais alegre de todas as pessoas que conheci. De repente vejo que suas palavras estão impregnadas de sensibilidade, mas não de tristeza. E então diz sem conseguir conter a urgência:

-É você, Ciganinha?

-Claro, sou eu.O que houve?

-Renato, meu irmão, lembra?

-Como poderia esquecer o meu amigo de infância?

-Sabia que ele tinha desaparecido?

-Sim, Luiza, mas me diga logo, estou ficando aflita.

-Ele apareceu ontem, Ciganinha, há anos sumira, sem deixar vestígios.

-Meu coração se alegrou ao lembrar o colega de estudos e folguedos, que há muito saíra do convívio dos amigos e da família. Todos pensavam que ele tinha morrido. Mas na verdade ele tinha vivido.

Luiza ainda estava bastante surpresa e feliz, mas com ternura disse:

-Chegou da Índia, Ciganinha, com idéias fabulosas, não é mais aquele menino agressivo, é um homem cheio de fascínio, escreveu muitos livros e aprendeu coisas magníficas.Se você olhar para ele não o conhecerá.

E então compreendi que as estrelas realmente queriam me contar algo nessa madrugada silenciosa e que eu breve poderia abraçar meus dois amigos de infância, ambos tão longe há um longo tempo e que tinham caminhado comigo durante toda a infância.

E quando olhei para o céu já não conseguia enxergar a minha estrela. Ela tinha desaparecido. Já tinha dado o seu recado.


Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente