Acho que o mundo carece de solidariedade. Estamos individualistas a um ponto
tão extremo que não vemos nem que o outro está sofrendo
quanto mais se devemos ajudá-lo.Muitas e muitas vezes falamos teoricamente
da solidariedade, do amor e confraternizamos muitas datas tradicionais. E vemos
pessoas precisando da nossa ajuda sem que isso implique num gesto que poderia
por vezes salvar até uma vida.
Esse tema me faz lembrar uma jovem que conheci na minha adolescência.
Sua carga era demasiado pesada, mas a via sempre com um sorriso nos lábios.
Conhecia-a através de uma amiga comum e sua simpatia me conquistou. Era
muito bonita e os olhos negros cujos cílios espessos e longos chamavam
a atenção e davam um toque original à sua fisionomia, estavam
sempre brilhantes e alegres.
Mariana me fez lembrar com o sorriso bonito que todos apreciavam um raio de
sol a brilhar e aquecer qualquer ambiente que entrava. Aprendi muito de desprendimento
e certeza de felicidade no contacto ameno que mantinha com a moça. Era
mais velha que eu cinco anos mas passávamos horas conversando e vi o
quanto a amizade de alguém é capaz de fazer. Contou-me uma história
triste com simplicidade incomum, jamais dando a impressão de estar mortificada
ou infeliz. Isso não quer dizer que não sofrera. Sua passagem
pela vida não estava sendo muito suave. Nada suave.
Perdera os pais há 18 meses atrás num desastre de carro e na ocasião
pensara que ia enlouquecer. Sua vida confortável, seus hábitos
tranqüilos e a certeza de uma segurança fruto de uma situação
financeira estável faziam com que ela jamais tivesse pensado em dificuldades.
Mas quando os pais se foram a garota ficara sozinha excetuando a presença
de uma velha tia e as reservas dos pais não eram grandes. Levavam uma
vida faustosa e gastavam quase tudo o que recebiam. Aparentemente parecia que
se tratava de uma família tradicionalmente rica, mas a verdade é
que o conforto era produto do trabalho exitoso dos pais. Ficara-lhe a casa em
que moravam que era realmente confortável.
Mariana ficou completamente sozinha e enquanto regularizava sua vida, sua tia
foi morar com ela. A diferença do ambiente animado e prazeroso em que
vivia contrastava com a vida que lhe seria imposta agora. Antes disso ela ficara
muito mal e tivera que ser hospitalizada porque emagrecera demais e não
conseguia comer nada. Os amigos lhe deram apoio, mas não na proporção
que poderia tirá-la do enorme fosso em que se escondera. Perdera a noção
de tudo que a cercava e muitas vezes numa espécie de defesa contra o
sofrimento esquecia que seus pais tinham morrido e acordava sem saber porque
aquela velha senhora, amarga e sempre mal humorada estava em sua casa.
Deixara de freqüentar o colégio e todos pareciam tê-la esquecido.
Um dia em que se encontrava deitada, no pior estado de depressão possível
recebeu a visita da mãe de uma ex-colega de sua classe e que não
sabia o que lhe tinha acontecido.
Sua vida mudou. Com severidade alertou-a que Mariana não podia continuar
assim e embora descrente ela ouviu aquela mulher que fora a única realmente
que lhe falara profundamente e com verdadeiro interesse. Nada havia de superficial
no que ela dizia e Mariana sentiu que alguém lhe estendia a mão
com carinho e profundidade. Levou-a para passar uns dias com a família
e a jovem entendeu como Dona Marta era uma pessoa iluminada. E extremamente
bondosa.
Pode entender como aquela senhora era querida pelas pessoas que lhe rodeavam
e comprovou que amor é o dar e receber. Recomeçou a estudar enquanto
sua protetora organizava sua vida. E daí em diante apesar do sentimento
de perda que não morre ela foi compreendendo o quanto tinha sido importante
para ela aquele gesto de solidariedade. Alugou sua casa, começou a trabalhar
e prosseguia os estudos enquanto morava com a família que lhe havia adotado
por assim dizer. Adotado não legalmente, mas pelos gestos humanos que
enriqueceram sua vida em todos os sentidos.
Dona Marta era psicóloga e assistente social e tinha uma visão
otimista da vida que aos poucos e com muita dificuldade foi passando à
sua pupila. E quando conheci Mariana ela deixava transparecer na fisionomia
o conforto de uma segurança interior profunda e a esperança que
o mundo lhe daria ainda outras lições de reconfortante bondade,
desprendimento e imensa solidariedade. Sofria ainda é claro, mas sua
vida apesar disso era plena.
Conhecer aquela jovem e poder usufruir horas de uma conversação
sadia e profícua foi uma das boas experiências de minha adolescência.