Muitas vezes a vida nos leva a recordações que nos lembram aspectos
do momento presente. Não que esse episódio se enquadre em nada que
estamos vendo no mundo atual, mas não deixa de ser uma digressão
do mesmo assunto: Violência
Um dos momentos que gostava de viver quando era pequena e no começo da
minha adolescência eram aqueles passados na casa de meus avós. Lá
encontrava um mundo propício a sonhos e prazeres porque a animação,
visitas e pessoas que freqüentavam eram realmente interessantes, embora bem
mais velhas.
Meu avô era advogado, jornalista, político e escritor e por isso
uma roda agradável se formava facilitando as conversas saltitantes e curiosas.
Gostava de ficar por lá ouvindo as histórias diferentes e eletrizantes
que o escritor narrava enquanto o diálogo se improvisava. Líder
por excelência fazia do ambiente e dos almoços em sua casa, sempre
uma fonte de prazer inominável. E também quando, sem as visitas,
se dispunha a conversar comigo, eu me sentia um adulto podendo emitir e ouvir
opiniões versáteis e agradáveis.
Sabia de alguma biografia de meu avô, que me surpreendia aqui e ali entre
uma brincadeira e outra, e ficava parada ouvindo, até que um adulto me
convidada a ir para fora brincar com as outras crianças.
Fiquei muito impressionada quando um dia pude perceber que o pai de meu avô
que era político havia sido assassinado em disputas políticas e
rivalidades de partidos.Perguntava a um e outro para que pudesse juntar pedaços
da história, e ele, embora tendo muito orgulho de minha mania de escrever,
dessa vez não me satisfez integralmente. Disse-me que um dia eu saberia..
E teria discernimento para compreender. Ficou realmente muito zangado quando percebeu
que eu ouvira algo a respeito.
Eu já tinha pelo menos onze anos quando percebi uma discussão entre
ele, minha mãe e minha tia e o modo como falava, usando uma autoridade
que dificilmente gostaria de manter. Mas dessa vez parece que estava firme e extremamente
severo.
Parei quando vi que eles discutiam, muito preocupada porque jamais havia visto
qualquer tipo de discussão naquele ambiente. Se havia, tinha estado sempre
muito longe do ouvidos atentos das crianças que freqüentavam a casa,
justamente seus netos.
E surpresa e atônita, ouvi meu avô falando:
-Ele virá. A casa é minha e não abro mão disso.
Minha tia parecia ainda mais obcecada em contestar meu avô, porque seu rosto
tão bonito estava amarelado de susto e mágoa.
-Papai, como pode imaginar em trazer para essa casa o assassino de seu pai?
Dessa vez quem levou susto fui eu, e na minha concepção não
tinha entendido o que ela dizia, e parecia que, tão sensata sempre, dessa
vez não estava em seu juízo normal.
Meu avô acrescentava:
-Virá sim, ele não tem culpa dos erros do pai. Claro, conheci-o
casualmente e conversando entendi de quem se tratava. Não estou feliz que
tenha sabido só depois, quem era ele. Entretanto pertence ao mesmo grupo
de políticos aliados. E não vou culpá-lo por um erro que
não cometeu.
Fiquei parada ali, sem que minha percepção pudesse captar imediatamente
o que ouvira. O choque fora grande demais.
Sabia o quanto o advogado era diferente de todo mundo que eu conhecera na minha
vida, surpreendente mesmo, e por isso o admirava tanto. Mas aquelas palavras me
abateram.
Os três continuavam a discussão, mas meu pai entrando resolveu intervir
e pedir à minha mãe que visse o estado do pai. Foi aí que
meu avô percebeu que eu estava ali. Nada falou, apenas chegando até
perto de mim abraçou-me e pediu-me que sentasse ao seu lado.
E enquanto o silêncio começou a imperar, meu rosto assustado preocupou-o.
Contou-me então que ele tinha quatorze anos quando seu pai morrera em decorrência
de rivalidades políticas e fora muito difícil encarar uma realidade
tão violenta.Não lhe pedi que entrasse em detalhes e nem ele o fez.
Explicou-me apenas que conhecera sem saber o filho desse homem, e que a justiça
deveria prevalecer. Ninguém podia culpar alguém pelos atos de outros,
mesmo que fosse o próprio pai.Esse era o senso de justiça que ele
queria me incutir.
Minha mãe então falou:
- Não precisa culpar, apenas queremos que não seja amigo de tal
pessoa.
-Não sou amigo, também não sou inimigo. Ele pertence à
roda de políticos que convidei para almoçar amanhã e não
vou excluí-lo.
Muitos anos se passaram desde então. Mas compreendi o que meu avô
quis dizer. Compreendi e apoiei do fundo do meu coração. Talvez
o filho nem fosse nascido quando tudo aconteceu, não sei. Mas uma coisa
era certa: Ele não tinha culpa.
Via meu avô extraordinariamente alto e forte, ombros largos e físico
potente, inteligente, escritor consagrado, respeitado por quantos o conheciam,
e nada tinha conseguido mudar a suavidade de sua alma.
Olhei para ele apreciando-o mais ainda, e perguntando como apesar da vida, dos
sofrimentos, da severidade que às vezes ostentava, conseguia sentir aquela
doçura que me fazia olhá-lo com tanto amor.