Uma das seduções de minha infância foi a casa da minha
avó Isabel. Ficava na Rua Raimundo Corrêa, em Copacabana e foi
motivo de muitas horas de alegrias insaciáveis.
Nunca esquecerei a figura dessa avó paterna. Loiríssima, olhos
muito azuis como os de meu pai, impressionava pela beleza nórdica, elegância
e cultura invulgar. Estudara no exterior, mais particularmente em Londres e
falava e lia correntemente em várias línguas. Admirava-a profundamente
embora quando ela morreu, eu não tivesse mais do que sete anos. Entretanto
a sua imagem já estava marcada indelevelmente em meu coração
e em minha memória.
Regularmente os netos se reuniam em sua casa para tardes inesquecíveis.
Meus primos, meus irmãos e eu. Brincávamos ao sabor de lanches
apetitosos e histórias incomuns contadas nos serões agradáveis
em que aprendíamos muito mais do que duas horas inteiras de aulas no
colégio.
O ponto maior para mim nesses dias fascinantes era a companhia de meu primo
Carlos, meu amigo inseparável de brincadeiras, defensor oficial, dois
anos mais velho que eu. Nunca esquecerei seu jeito manso, os gestos meigos e
gentis contemplando-me do fundo de seus olhos verdes e ligeiramente estrábicos,
motivo pelo qual usava óculos. Mas olhos deliciosamente ternos e amenos.
Olhos que eu amava e que me acalmava na contenda das crianças reunidas.
Carlos era uma criança esguia, muito clara e suave passando sempre o
conceito de fragilidade. Por isso meus irmãos e primos mais velhos zombavam
dele com a sua idéia sempre presente de me proteger continuamente. Eu
era alta para a idade e corria desenvolta e veloz com os cachos esparsos pelo
rosto continuamente rosado pelo exercício contínuo. Muitas vezes
levantava o queixo com decisão quando algum deles o afrontava. E a briga
começava inquestionavelmente até que algum adulto interceptasse
seu desenvolvimento.
Conversávamos muito e o meu primo sempre me preocupava porque achava
que ele devia se defender com mais afinco. Eu pertencia a uma família
numerosa, em que a maioria dos irmãos eram do sexo masculino e por isso
instintivamente sabia como fazer para não me sentir tão indefesa.
Estranhava, portanto que Carlos não o fizesse com tanto desembaraço.
Mas era só tentarem tocar em mim e ele avançava mesmo cauteloso.
Sabia sem entender muito que minha tia, a mãe de Carlos era uma pessoa
doente, que de vez em quando se ausentava para fazer tratamento em hospitais
especializados. Dificilmente ela estava presente com a meninada. Muitos anos
mais tarde soube que meu avô paterno que era médico sempre fora
contra o casamento dela com meu tio por essa razão. Era uma boa e doce
mulher que eu admirava e acho que a origem do temperamento de meu primo era
dela.
O irmão de Carlos, Roberto, meu primo mais velho era justamente o contrário.
Forte, moreno, cabelos negros, parecia vender saúde e, além disso,
gostava de provocar a platéia mais jovem, por isso a implicância
que eu sempre mantive com ele naquela fase. Na verdade, o adorava também,
mas costumávamos brigar variadas vezes. E nos enfrentávamos em
igualdade de condições embora eu fosse bem menor. Mas eu sabia
contestar com facilidade e isso o irritava profundamente.
À medida que o tempo passava sentia Carlos mais frágil. Eu não
poderia saber o que era, é claro, porém percebia que ele se cansava
com facilidade. Enquanto eu corria com fôlego total ele logo o perdia
parcialmente e eu o admoestava dizendo que ele era muito mole.
Lembrando-me disso meus olhos se enevoam pela saudade e incompreensão
infantil e imagino o quanto ele deve ter sofrido, sem saber descrever o que
realmente sentia.
2ª PARTE
Quando cheguei naquele dia na casa de minha avó, Carlos estava deitado
e em sua tristeza parecia querer meu apoio. Lembro-me que algum adulto recomendou-me
que eu não o cansasse e prometi obedecer. Ele pediu-me que fosse sentar-me
bem perto dele, pois tinha algo a me dizer:
- Você está doente?
- Não sei. Acho que sim. Vou para Campos de Jordão.
- É uma cidade?
- Sim, é. É porque é alto. Faz-me bem.
- Bem, por que?
- Estou doente, sim. E aí eu vou ter que ir lá para tratar-me
- Você não está doente.
- Eles falam isso.
- Não. Não está. Mostre a eles que não está.
Levante-se dessa cama. Diga que quer brincar. Vamos.
- Não posso, Vânia. Estou fraco
- Você que pensa isso, seu bobo. Eles não podem lhe levar para
outro lugar. A gente vai ficar longe?
- É só por um tempo.
- Não, levante-se.
- Não agüento. Fico me sentindo mal.
Olhei-o em desespero. Não podia acreditar naquilo. Ele tinha que ficar
em pé. Puxava-o e quando vi a porta abrir-se lamentei que minha avó
tenha me olhado muito zangada.
- Vânia vá lá para dentro.
- Por que ele vai embora, vovó?
- Ele não vai embora. São umas férias, minha filha. Vá
para a sala que quero conversar com você.
Aquilo não estava me convencendo. Pela primeira vez duvidava de minha
avó. Férias? No meio das aulas? Essa pergunta martelava minha
cabeça.
Minha avó conversou longamente comigo enquanto eu chorava inconformada.
Ela pediu que eu não ficasse assim na frente do meu primo e começou
para mim uma nova era. Pela primeira vez eu estava sofrendo e muitas vezes na
vida iria sentir essa mesma impotência que me acometeu naqueles instantes
de desespero que se prolongou por meses. Meu primo estava com um começo
de lesão no pulmão, herdada da minha tia e precisava se tratar.
Campos do Jordão era o melhor lugar.
Muitas vezes durante aquele tempo iria visualizar Carlos sozinho ou com estranhos
naquele lugar e isso me deixava transtornada. Não podia lutar contra
os adultos. Nem contra o mundo.Lutava apenas contra o próprio sofrimento.
Aquele paraíso de sedução que era a casa de minha avó
deixou de me encantar tanto. Tínhamos sido criados ali, como irmãos
inseparáveis, amigos, parceiros de brincadeiras e de segredos. E a realidade
da vida nos mostrava ainda muito pequeninos o quanto eram duros esses acontecimentos
que ninguém compreendia. Queria saber tudo sobre o que estava acontecendo
e porque. Não me conformava de não me elucidarem dando uma resposta
satisfatória.
Carlos voltou um dia, parcialmente recuperado, mas não nos deixavam
tão à vontade para trocarmos nossas confidências e realizarmos
um plano para que ele não voltasse para a cidade paulista. E durante
anos ficamos assim divididos em espaços intermináveis de intervalo,
aflitos e ele sempre muito pálido. Lembro-me que uma vez rezei para que
ele adquirisse um pouco de minha saúde. Ambos chorávamos perto
de nova partida. E não eram lágrimas de manha e sim de angústia
e dor.
Quando lhe deram alta foi um dia feliz, mas nós dois não tínhamos
tempo mais para tantas horas divertidas. Estávamos no ginásio,
meu colégio especialmente era muito puxado e ele tinha que se esforçar
um pouco, pois a doença o deixara bastante atrasado. Outras coisas viriam
a acontecer que impediriam assíduos encontros entre nós mas quando
ocorria era só felicidade.
CONCLUSãO
Eu fiz tudo muito cedo em minha vida e aos dezesseis anos tinha responsabilidade
de adulto além de estudar e sempre escrever.
Poucas vezes podia ver o meu primo, mas ambos não esquecíamos
essa infância ao mesmo tempo deslumbrante e sofrida.
Quando meu pai me contou que Carlos estava seriamente doente, fiquei martirizada.
Não alcancei que fosse algo tão fatal até o momento que
ele falou de câncer. Traumatizada, perguntei se haveria possibilidade
de cura e ele me disse que o pulmão atingido pela doença naqueles
anos todos tinha ficado muito danificado. O câncer se localizara ali.
Não acreditei. Não podia acreditar. Ele só tinha 21 anos.
Não era justo.
Eu morava no Rio e ele havia se mudado para São Paulo e freqüentemente
lembrava-me daquele meu companheiro de infância, irmão verdadeiro,
pequeno herói de uma estrada acidentada, que me defendia arrostando as
brincadeiras pouco delicadas dos primos e do irmão. Pequeno e altivo
herói que enfrentara as intempéries da vida sem uma queixa mais
brusca. E que viera cumprir árdua e ignorada missão. Talvez a
missão da suavidade, da meiguice e do carinho.
Muitas vezes nessa época, não conseguia conciliar o sono e quando
conseguia acordava apavorada ao pensar que uma tempestade devastadora tinha
caído sobre nossas cabeças.
Carlos morreu num dia de sol provavelmente tão quente e luminoso como
fora muitos dias de nossa meninice e eu o recebi no Rio, no cemitério
São João Batista observando que ele conservava o mesmo rosto infantil,
de traços finos e clássicos, apenas devastados pela fraqueza com
a qual essa dolorosa doença costuma castigar as suas vítimas.
E nem naquele dia nem nunca esquecerei aquele suave menino, amigo fiel, irmão
dedicado, que mesmo depois de ter dormido o mais profundo sono veio encontrar-se
para o descanso perene com a prima para a última e amargurante despedida.
Mas viverá sempre em meu coração e nas recordações
da infância que passou a um tempo bela e triste.
OBS: Os fatos são absolutamente reais e os nomes dos personagens foram
substituídos para preservar suas identidades.