A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

MEU AVÔ - O ÍDOLO IMORTAL

(Vânia Moreira Diniz)

Quando penso nele a sua figura proeminente sempre aparece nítida e expressiva. Jamais esquecerei da profunda impressão que me causava todas as conversas que mantinha com esse homem extraordinário, cuja inteligência impressionava a todos que o conheceram.

Lembro-me de sua casa na Gávea, Rio de Janeiro, refúgio seguro de minha infância, onde nos reuníamos meus irmãos e primos e nos parecia uma terra de sonhos. Na ocasião, imagino que não tivesse consciência exata do valor inestimável daqueles dias encantadores que fizeram a rotina da maioria de minhas férias escolares.

O movimento daquela casa, seus almoços e jantares divertidos, a liderança sempre presente de meus avós, me dava a sensação de segurança e tranqüilidade jamais vividas após esse período.

Nunca esquecerei da mesa enorme, das poltronas reconfortantes, da presença da babá que nos criara, do escritório de meu avô que nos parecia um mistério especial.

Todas as manhãs muito cedo, talvez o primeiro movimento do dia era a presença acolhedora de Dona Diva, a secretária de meu avô. Ouvia da sala o tic tac da máquina de escrever ininterruptamente e a voz de meu avô falando e falando. Muitas vezes, a minha avó ou a babá ou mesmo outra empregada da casa tentavam me tirar ali de perto alegando que iria atrapalhar meu avô. Era a muito custo que conseguiam seu intento.

Um dia eu estava realmente insistente. Queria entrar e nada me fazia desistir dessa idéia. Meu avô escutando o barulho impacientou-se. Assustei-me no momento em que ele abriu a porta com o rosto deveras zangado e pegou no meu braço obrigando-me a entrar enquanto dizia

- Sente-se aí. Terá a manhã inteira para ficar aqui, pois só sairá quando acabar o meu trabalho.

Nos primeiros momentos tive a sensação gostosa de ter conseguido a satisfação de um desejo e comecei a ler alguns títulos de livro. Aproximei-me da mesa e peguei um papel e um lápis, mas com o passar do tempo, cansei lastimosamente. Não agüentava mais ver meu avô falando e a bondosa Dona Diva escrevendo à máquina. Pedi mansamente para ir embora, e senti que a secretária dele me olhava penalizada. Pediu:

- Por favor, Dr. Arraes, deixe a menina sair.

Ele contemplou-me friamente, dizendo:

- Não, não sairá. Quero que ela aproveite o tempo aqui. Aprenderá a acreditar no que os adultos dizem. E voltando-se para mim, traiu no olhar a suavidade que procurava esconder na fisionomia fechada.

Lembro-me que nunca mais senti necessidade de atormentá-lo nessas horas matutinas.

Revejo-o na casa da Gávea, sentado em sua poltrona predileta e consigo memorizá-lo com tal nitidez que meu coração fica apertado.

Extraordinariamente alto e forte, com os cabelos negros e poucos fios grisalhos, os gestos largos , a palavra fácil e eloqüente exalava carisma na simples figura altaneira.

Era escritor, advogado, jornalista e deputado e entre seus ouvintes habituais e sempre que podia lá estava eu a beber na fonte de seu conhecimento e dos interessantes conceitos que permeavam aquela personalidade insólita.

Aos dez anos andava preocupada e ansiosa porque lendo continuamente a Obra de Monteiro Lobato, quase misturava a ficção desses livros maravilhosos com a realidade e um dia , meu avô pediu-me que viesse conversar com ele. Apontou para uma cadeirinha infantil que fazia as delícias da meninada e eu depressa me sentei a seu lado. Com a voz mansa e decidida observou-me que sabia que eu estava preocupada com alguma coisa e parecia muito preocupada.

Contei-lhe então, daquele famoso pó de pirlimpimpim que era o sonho de toda a criançada leitora do talentoso escritor paulista e que podia levar as pessoas a lugares sonhados e impossíveis.

Meu avô olhou-me longamente entre divertido e sério, dando a impressão de estar falando a mesma língua que a minha. E então disse algo que no caminho da minha vida jamais consegui esquecer dois dias seguidos.

- Minha filha, esse pó o pó de pirlimpimpim pode ser usado durante toda a sua vida. É só saber dosá-lo.

Olhei-o espantada, achando que o escritor tão respeitado estivessse ficando maluco ou se divertindo à minha custa.

Ele percebeu e continuou inalterado:

- Vânia, eu não estou brincando. Não faria isso com você num momento importante. Eu lhe asseguro que você pode realmente usá-lo. Sabe por que?

Silenciosamente balancei a cabeça em sinal negativo e ele falou algo que até hoje recordo deliciosamente:

- Minha filha, o pó de pirlimpimpim é a sua imaginação. Ela pode levar-lhe a caminhos inexplorados, a lugares de sonhos jamais conhecidos que lhe fará viver um conto de fadas. Mas olhe bem: Dependendo da dose ele poderá lhe fazer grande mal. Porque, minha querida, a imaginação é tudo na vida e se nutre de pensamentos sadios, que serão o seu alimento eterno.Cuidado e brevemente poderemos conversar mais sobre isso, quando você for um pouco maior.

Não sei porque, mas acreditei plenamente naquele homem que me amava e que estava dando dicas de felicidade, energia, solucionando algo que era um problema para minha cabeça infantil. Olhei-o como um ídolo e jamais duvidei de sua palavra.

Em todos os momentos, na convivência estreita que mantínhamos, admirei aquela figura forte e amena, generosa e exigente, exótica e simples, doce e rígida, que sabia cultivar o amor sem torná-lo pueril ou vulgar.

Admirava a convivência dele com minha avó e com outros membros de nossa família e, contudo sabia o quanto especial era para ele.

Olhando aquela personalidade diferente, cuja cultura impressionava a quantos dele se aproximavam, relembro-me dos dias em que se reuniam estudantes e, escritores, advogados e outras pessoas e o quanto achava sedutoras aquelas noites agitadas e misteriosas. Queria sempre ficar mais, olhar tudo ao meu redor, ouvir o que falavam e observar, talvez sem entender o rosto expressivo daquele homem, cujas palavras se tornavam o alimento cultural dos ouvintes que lá iam para conseguir absorver esse conhecimento.

Minha avó sempre interrompia o meu enlevo chamando-me para dormir e eu obedecia frustrada.

Foi assim durante todos os anos de sua vida. A simples presença dele era a certeza de horas prazerosas e especiais.

Eu já era uma moça quando senti pela primeira vez que meu avô não era invulnerável e ele se preparou para uma operação inadiável.

Depois de muitos dias chegou em casa e fomos visitá-lo, meu marido e eu como havíamos feito no Hospital.

Ao chegar em seu quarto percebi que ele estava abatido e perguntei como se sentia. Olhou-me com aquela expressão singular, que parecia não entender o motivo de pergunta inútil e falou docemente:

- Sim, minha filha, estou melhor. Mas quero que você saiba uma coisa: Só conseguimos avaliar o que valemos quando estamos debilitados. Nesses dias, pude ver que dependia daqueles jovens médicos para minha sobrevivência ou pelo menos para serem o instrumento dela. A conclusão é que nada somos.Aproveite a vida, minha querida, mas não se esqueça jamais que apesar de tudo que chegamos a ser dependemos sempre dos outros.

Saí triste da casa do meu avô e três dias depois meu pai telefona-me cedo, pedindo que fosse á casa de meu avô, pois ele estava muito mal. Quando cheguei, não tive coragem de encarar a realidade, não queria acreditar. Meu avô morrera de enfarte aquela noite, na mesma casa da Gávea que o vira delirante de vida, vencedor, consagrado escritor, brilhante advogado e que se fora simples e docemente, deixando a marca de seu incontestável carisma.

Para mim como para muitos que o conheceram ele continuará pela vida afora glorioso, imortal, na morte como fora na vida.

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente