Acordei, no quarto ainda escuro e olhei instintivamente para o lustre azul
que continha um elegante contorno de desenho em alto relevo. Lembro-me que sempre
acontecia isso quando acordava. Gostava de apreciá-lo e pensar nas várias
atividades do dia. Mas aquele era especial. Estava fazendo doze anos e achava
que era dona absoluta do mundo. Tinha o conceito que essa idade era o marco
de uma vida adulta. E tudo nessa época me sorria. Tinha tido algumas
tristezas na minha infância com a saúde de um primo querido, mas
parece que os acontecimentos se encaminhavam agora satisfatoriamente. Era feliz
com tudo que encerrava minha vida.
Meu pai bateu de leve e entrou com muitos presentes. Olhei-o sempre me impressionando
com a cor de seus olhos imensos cuja expressão todo mundo dizia que se
parecia tanto com os meus. Às vezes ficava no espelho a questionar-me
e via um pouco deles também. Logo foi me entregando uma pequena caixa
que continha um relógio de ouro extremamente delicado com a pulseira
escrava que eu tanto gostara e que agora olhava encantada. Os outros presentes
eu veria depois, mas aquele era o meu preferido. Adorava relógios, uma
mania que carrego até hoje.
Minha vida era divertida. Gostava imensamente de ler e escrevia compulsivamente,
invariavelmente em todas as oportunidades. Muitas vezes, em meio a certas brincadeiras
infantis quando percebiam que eu desaparecera me encontravam no escritório
de meu pai ou no meu quarto escrevendo. Dirigia um pequeno jornalzinho do colégio
e achava que era a própria redatora. Mas também gostava imensamente
de me divertir, sair com as colegas, viajar, ir ao cinema, patinar, praticar
esportes, freqüentar de maneira exagerada lanchonetes e principalmente
ir ao teatro. Sempre adorei teatro e naquela época fazia parte, acho,
do meu contexto de vida. A praia para mim além de tudo era uma fuga de
qualquer coisa que eu não compreendesse ou não gostasse. Muitas
vezes, foram me localizar depois de um aborrecimento qualquer deitada na areia
da praia, perto de minha casa... O sol tinha uma estranha magia para mim e também
essa natureza esplendorosa que eu seguidamente amei. Gostava de admirar o céu
enquanto estava deitada em frente ao mar e sentir as águas com as ondas
imensas que por vezes geladas molhavam meus pés.
Foi assim no meio de uma vida ativa e buliçosa que vi meus pais perceberem
que meu irmãozinho de três anos estava com as pálpebras
inchadas. Eu também achei. Ele era muito lindo. Loiro, com enormes olhos
verdes azulados, os traços bem delineados no rosto muito claro era uma
imagem de quase perfeição. Além disso, e em muitas conversas
intermináveis que mantinha com ele dava para verificar com facilidade
que sua inteligência estava extremamente acima de uma criança de
sua idade. Era muitíssimo agarrado comigo e mantínhamos um estreito
relacionamento apesar da diferença de idade. Muitas vezes iria chorar
escondido enquanto procurava disfarçar as lágrimas na sua frente.
As perguntas que ele fazia me deixava engasgada e como era apenas uma menina
começando a adolescência ficava em dúvida quanto ao que
poderia lhe dizer.
Foi levado ao médico da família. Dr. Odilon, figura impressionante
que estará sempre comigo. Desde pequena acostumara-me a vê-lo e
aquele homem essencialmente humano e meigo jamais foi um médico para
mim. Era um pai em todos os momentos. Um segundo e maravilhoso pai.
Estava estudando no escritório quando vi que o Dr. Odilon entrara e acercou-se
de mim beijando-me e passando a mão em meus cabelos enquanto olhava com
interesse o caderno no qual eu parecia estar tão concentrada.
- Está estudando ou escrevendo?
Sorri porque sabia o quanto ele me conhecia.
- Estudando.
- Logo vi. Quando você escreve ou lê não vê ninguém.
- Ao senhor eu veria.
Contemplou-me com os olhos azuis acinzentados que eu tanto amava e que tantas
vezes me infundira calma e confiança enquanto respondia:
- Não. Não veria.
Aceitei o que ele disse. É, talvez não visse mesmo, pensei.
- Preciso conversar com sua mãe. Fique estudando.
Saiu fechando a porta e tive certeza que algo sério ele queria dizer.
Parecia triste e naquela hora eu não me lembrei que Cláudio fizera
vários exames. Era muito garota e até aquele momento nada poderia
imaginar de catastrófico.
Ouvi então o barulho de uma voz lamentosa que parecia de minha mãe
dizendo:
- Não pode ser. Não pode ser.
Quando cheguei na sala ela chorava muito abraçada ao médico e
meu pai procurava se conter, visivelmente chocado.
E só muito depois eles me viram e compreenderam que eu estava lá
há bastante tempo.
- Estava aí, Vânia?
Não respondi porque não conseguia falar.
O médico se afastou delicadamente de minha mãe e caminhou até
onde eu estava abraçando-me enquanto eu silenciosamente chorava.
- Vamos conversar, disse-me ele.
- O que ele têm?
- Talvez fique bom.
- Talvez? E se não ficar?
- Se não ficar, filha muitas coisas poderão acontecer. Mas há
um longo caminho. Explicarei tudo a você. Afinal já é uma
mocinha.
2ª PARTE
Foi constatado que Cláudio estava com nefrose. Uma doença do
rim que paralisa o órgão fazendo com que a absorção
da água seja completa. E naquela época não havia transplante
e hemodiálise. Era fatal em quase todos os casos e dolorosa a evolução.
Degenerativa. Tinha três médicos que se revezavam continuamente,
um deles nefrologista. Homem excepcional a quem muito me afeiçoei. Mas
aquele que estava em todas as horas lá era o meu querido Dr. Odilon.
As crises eram grandes e as dores imensas e meu irmão passou um ano e
meio nesse tormento, mas não vou me estender sobre minúcias desse
mal terrível.
Cláudio como já disse era muito ligado a mim e eu ficava horas
intermináveis no seu quarto, brincando, conversando, ouvindo música,
e meus pais em certas horas me obrigavam a sair de perto dele. Eu tinha que
estudar e muito (o colégio exigia demais) e as outras aulas também.
Muitas vezes à noite ele tinha crises de dores. E eu desesperada deitada
e querendo estar a seu lado, punha as mãos nos ouvidos para não
escutar o desespero contra o qual era impotente.
Dr. Odilon, nessas horas ia ao meu quarto para fazer com que eu saísse
um pouco daquele martírio. Pedia que eu me levantasse e me levava para
dar uma volta de carro pela avenida Atlântica enquanto conversava e procurava
me acalmar. Nunca esquecerei, por mais que o tempo passe do som de sua voz extremamente
amiga tentando inutilmente fazer-me compreender que a vida não era só
composta de tristezas. Eu já não estava acreditando. A única
coisa que me aliviava era realmente conversar com ele e escrever. Recordando,
lembro-me de quanto me valeram meus desabafos escritos.
Minha dor maior era saber a intensidade do sofrimento de meu irmão e
sentir a lenta amargura de meus pais. Muitas vezes Cláudio e eu tínhamos
longos papos. Ele costumava se olhar no espelho e via o quanto estava inchado.
Um dia me perguntou
- Eu era bonito, não era, Vânia?
- Você é bonito!
- Não, não sou. Por que? Por que eu fiquei assim?
- É só durante algum tempo, Claudinho.
- Eu vou morrer?
- É claro que não. Não vê que os médicos estão
cuidando disso?
- Vânia eu queria ir para o colégio.
- Não poderá ser agora. Quem sabe o ano que vem você já
poderá estar lá?
Ele olhava para mim desconsolado e eu queria morrer naquele momento. Minha vontade
era morrer e eu me perguntava: Por que? Não sabia mais o que responder
ao meu irmãozinho o que dizer. Eu não poderia me responder. Quem
me responderia?
Lembro-me que muitas vezes as freiras ou professoras do colégio me encontravam
na sala de biologia tentando descobrir onde estava o mal de Cláudio,
lendo alguma coisa, procurando em livros. Ou observando os órgãos
fictícios expostos na vitrine para estudo. Eu queria uma resposta e também
saber que doença era essa.
Várias vezes quando eu fazia inúmeras perguntas ao médico
ele me dizia penalizado enquanto me abraçava forte:
- Por que você quer saber, filha? Vai adiantar?
- Eu não sei sofrer sem compreender.
E quando me olhou seus olhos tão meigos estavam rasos de lágrimas.
Nunca agradecerei suficiente a esse homem especial o que ele me ajudou. Não
sei o que seria de todos nós sem o seu carinho. Não sei. A mim
especialmente ele se dedicava com afinco. Eu era praticamente a única
menina entre muitos irmãos e minhas duas irmãs eram muito pequenas
(Uma delas tinha poucos meses.). Por isso Cláudio sempre fora muito ligado
a mim e eu a ele. Lembro-me que havia duas babás que se revezavam a seu
lado, mas na verdade, ele desejava a minha companhia em todas as horas livres.
Para ser sincera, embora ficasse muito emocionada gostava de estar sempre com
meu irmão. Almoçava muitas vezes a sua comida sem sal e não
reclamava simplesmente para satisfazê-lo. Por incrível que possa
parecer em várias oportunidades nos surpreendiam dando gargalhadas por
histórias mutuamente trocadas. Ou algum programa de televisão.
Mesmo que depois chorasse muito. Meus pais sofriam demais e era difícil
vê-los assim.
Perguntava-me se Deus era justo e não conseguia uma resposta muito coerente.
Nas horas longas das noites mal dormidas, costumava rezar, pedindo a cura quase
impossível desse menino tão amado. E até hoje sinto meu
rosto arder naquelas lágrimas derramadas.
3ª PARTE
Foi difícil ouvir que Cláudio estava piorando, mas era verdade.
Minha mãe nunca aceitou a idéia dele morrer. De jeito nenhum.
Naqueles dias ele piorara tanto que passou rapidamente para o coma. O que agradeço
a Deus foi o bem-estar que o menino pode ter, pois até oxigênio,
aparelhos e cama especializada foram levadas para minha casa e assim ele pode
ter o conforto de ficar em seu ambiente e ter sido cercado por médicos
competentes já que minha família era composta por muito deles.
Era mais fácil providenciar tudo isso.
Recordo-me que uma vez enquanto meu irmão estava nos últimos dias,
eu ficava com remorso de brincar sabendo seu estado. A professora acercou-se
de mim, perguntando:
- Por que não vai se divertir um pouco um pouco, Vânia?
Minhas amigas tinham vindo me chamar.
- Acho que não devo. Ele está sofrendo
- E você acha que isso não é certo? Você precisa se
recuperar. Só o conseguirá tentando viver a sua idade, minha querida.
Vá brincar.
Nesse dia quando cheguei em casa ele havia piorado ainda mais. Chorei desesperadamente
enquanto Dr. Odilon procurava me fazer compreender que tudo fora uma coincidência.
E então minha mãe aproximou-se de mim:
- Minha filha, nós nunca aceitamos a idéia dele morrer, não
é verdade?
Balancei a cabeça afirmativamente:
- Mas se ele morrer devemos aceitar.
- Ele não vai morrer.
- Mas se isso acontecer, deveremos nos conformar. Está pensando apenas
em você? Talvez Deus ache que seja o seu descanso. Devemos estar preparados.
Não dava para falar. A dor era grande demais. Era demasiado ainda ter
que dizer alguma coisa.
Assisti todos os minutos do seu fim. Não abri mão disso mesmo
com a ordem severa do Dr. Odilon:
- Fique ali, Vânia, perto de sua mãe. Ela precisa de você.
- Desculpe. Vou ficar aqui.
- Minha filha, ele está morrendo.
- Eu sei. Vou ficar com ele. Até o final.
Abraçado comigo compreendeu que não adiantaria insistir. Não
contarei a dor. Nem poderia. Ultrapassa qualquer cena que pudesse descrever.
Não é descritível. Não é humana. Nem consolável.
O coração dói como se fosse ferida. Dizem que o coração
só se manifesta no enfarto ou na angina. Não é verdade.
Dói no sofrimento, na saudade, na tristeza e é uma dor quase insuportável.
Desumana.
Vi tudo até seu último momento entre meu pai e Dr. Odilon. E jamais
esquecerei, nem que eu viva duzentos anos a imagem que está fixada na
minha memória nítida, profunda e marcante. Sem palavras.
CONCLUSãO
Não compareci ao enterro por razões óbvias e por proibição
do médico e dos meus pais. Meu pai resolveu que todos sairíamos
durante algum tempo da casa, mas as empregadas ficariam mantendo o ritmo normal.
Eu iria para casa do meu tio na Rua Raimundo Corrêa, na qual já
brincara muito na infância, pois fora de minha avó. Achavam que
a presença de meus primos poderia me animar muito. Só que antes,
pedi ao Dr. Odilon que me levasse até em casa. Precisava ir lá.
Ele prontamente atendeu-me certo que eu queria buscar alguma coisa.
Entrei emocionada e ele perguntou-me
- Que quer, aqui, querida?
- Vou lhe pedir um favor.
- Quem poderia negar-lhe qualquer coisa? Muito menos eu. Diga. Não quer
ir para casa do seu tio? Quer ficar lá em casa?
- Não é isso. Quero que o senhor me espere aqui embaixo. Vou ter
que subir até meu quarto. Demorarei um pouquinho.
Ele assustou-se.
- E por que, Vânia? Que vai fazer?
As lágrimas caiam abundantemente quando respondi:
- Escrever... Eu preciso. Sem isso não vou conseguir ir para lugar nenhum.
Muito delicadamente, ele segurou meu rosto entre as mãos, olhou-me daquele
jeito que só ele sabia, transbordante de carinho, amor e preocupação
e respondeu-me:
- Vá, minha filha, Escreva. Eu esperarei o tempo que for necessário.
Ficarei no escritório de seu pai. Se precisar de alguma coisa, grite.
- Não precisarei. Só de papel e caneta.
Lentamente encaminhei-me para a escada, e sentia urgência de chegar. Antes
resolvi entrar no quarto de meu irmãozinho, cercado de tantos brinquedos
e jogos modernos que meu pai comprava todos os dias para ele e entendi que nada,
nada mesmo compensava sentimento e ternura e ultrapassaria nossa humana ineficácia.
E que nada seria importante se não houvesse amor. Amor em todos os sentidos.
Amor humano em geral. Muitas vezes a vida me confirmaria isso.
Chorando muito, entrei no meu quarto, sentei à minha mesa com um nó
imenso na garganta e quando comecei a escrever percebi um ligeiro, quase imperceptível
alívio no coração.
(OBS> O depoimento, os nomes e os Personagens são absolutamente reais.)