Saí para mais uma visita à periferia da cidade de Brasília,
já me entristecendo pelo que poderia ver. Andar de carro por aquela região
nos dá um sentimento de quase total impotência, como se estivéssemos
com as mãos atadas. É lastimar porque estamos sentados com tanto
conforto, enquanto pessoas tão merecedoras como nós estão
ali, cansados a esperar uma condução, na maioria das vezes viajando
em pé e mesmo assim pagando uma quantia pequena e que, no entanto fará
falta.
Quando cheguei verifiquei que devia ser uma rua das mais pobres da região
e meu coração se confrangeu por tanta miséria perguntando-me
insistentemente como fazia há anos, a razão de tanto contraste.
Na porta daquela casa eu me detive. Sempre procuro tomar um pouco de ar para que
possa me controlar ao ver tantas coisas tristes. Mas quando entrei e deparei-me
com tanta miséria, a revolta foi maior. Não se podia chamar aquele
compartimento de uma casa. Casebre era o máximo, mas o mais triste quando
vi no meio do aposento frio cujo piso era de cimento, uma criança deitada
num colchão. Seu aspecto era tão frágil que parecia não
ter mais de cinco anos mas os traços de uma magreza estranha revelava ter
muito mais. O rosto estava amarelado e os olhos fixavam uma distância impossível
de avaliar. Pareciam vidrados e quando se virou para mim, teve uma expressão
de surpresa e ficou me olhando durante longo tempo. Queria saber sua reação,
por isso fiquei calada enquanto sorria para ele:
- Como é seu nome?
- Marlon, respondeu ele enquanto fazia a primeira sílaba ficar tônica.
- Você tem nome de artista. Ele então fez um movimento súbito
e disse baixo parecendo que a fraqueza não o deixava pronunciar claramente
as palavras.
-Você é bonita, quem é?
Olhei-o com ternura enquanto apenas dizia
- Alguém que veio visitar-lhe. Gosta de receber visitas?
Não me respondeu, mas seus olhos continuavam fixos em mim. Observei então
com mais detalhes aquele cômodo pobre, sem uma luz para dar um pouco de
vida e vi mais três crianças. Todas com aspecto doentio notando as
lágrimas que desciam pelo rostinho da menor. E pouco depois, uma jovem
que imaginei ser a mãe saiu de um vão que deveria ser a cozinha.
Aproximei-me, beijando-a enquanto a moça, tímida, não sabia
o que falar.
- Conversei com o Marlon, o que ele tem?
- Ele é doente. O Doutor disse que ele sofre de ataques.
Fiquei imaginando o que seria e então lhe perguntei
- Ataques? Convulsão? Epilepsia?
- Sim, é esse nome. Ele toma remédio controlado.
- E onde consegue esses remédios?
- No posto. Mas não é sempre que eu encontro. O Doutor me dá
a receita dizendo que ele não pode deixar de tomar, mas nem sempre consigo
encontrar.
Foi com muito custo que consegui acalmar meu coração enquanto lhe
passava a cesta básica e lhe fazia algumas perguntas. E ela começou
a falar com naturalidade como se precisasse desse momento de desabafo.
Imaginei a miserável vida que levavam, a luta da mãe para trabalhar
deixando aquelas crianças ali e a ausência do pai que não
dava nenhuma assistência.
Comecei a pensar uma forma de arranjar um lugar para que as crianças ficassem
durante o dia, onde recebessem assistência e um tratamento mais adequado
para Marlon.
Meus pensamentos iam para longe, mas nunca me conformaria. Não com a miséria!
Não com uma vida indigna para as pessoas! Não com o sofrimento de
uma criança!
E imaginei meus anos de infância, o conforto que me cercou, os brinquedos
que alegraram minha meninice em contraste com aquela miséria e tristeza.
Prometi que voltaria na próxima semana, pois queria ir ao hospital em que
o garoto se tratava.
Caminhei devagar divagando longamente, sentei no carro e não consegui vencer
a emoção.O quadro triste não saía do meu pensamento
e como um filme contemplava as cenas em seus mínimos detalhes. Ali mesmo,
naquele lugar onde crianças brincavam pelo chão de terra e poeira,
esquecidas de seu triste destino, as lágrimas aliviaram a enorme dor que
se apoderava de minha alma como um terremoto hediondo.