Quem já leu as páginas deliciosas de apimentadas do romance
Dona Flor e Seus Dois Maridos, do escritor Jorge Amado, já deve ter
tido a oportunidade de conhecer uma das inúmeras e infinitas facetas
do Alexandre Robatto Filho.
Nascido em 04 de novembro de 1908 na Praia do Cantagalo, Freguesia dos Mares,
em Salvador, estado da Bahia, era filho de Alexandre Robatto que exercia a profissão
de protético na então pacata cidade de Salvador, (de descendência
italiana pelo lado paterno) e da Da. Camilla Rocha Robatto que era natural de
Saubara, pequena localidade praieira localizada no Recôncavo Baiano, até
há pouco tempo pertencente ao município de Santo Amaro da Purificação.
A Da. Camilla Robatto era natural de Saubara, sendo uma das filhas do segundo
casamento da Sra. Perpedigna Amélia da Cunha Rocha com o Prof. Ernesto
Rocha. A Sra. Perpedigna Amélia da Cunha Costa - que seria a avó
materna do futuro cineasta baiano Alexandre Robatto Filho - havia contraído
as primeiras núpcias com o Ignácio de Jesus Costa e com este tivera
quatro filhos, a saber: Alcebíades da Cunha Costa, Eudóxia da
Cunha Costa, Perpedigna da Cunha Costa e Ana da Cunha Costa (Naninha).
Todavia, o seu primeiro marido, Ignácio da Cunha Costa, teve uma morte
prematura (insuficiência cardíaca) o que levou a Perpedigna Amélia
da Cunha Costa a contrair suas segundas núpcias com o Prof. Ernesto Rocha,
filho do Padre Camilo Rocha que era então vigário da Freguesia
de Saubara.
Desse seu segundo casamento com o Prof. Ernesto Rocha, ela teve mais duas filhas:
a primeira foi a Camila Robatto (note-se a "homenagem" ao avô-Padre!)
que seria a mãe do futuro cineasta Alexandre Robatto Filho e da sua irmã
Cibele Robatto. A segunda filha seria a Ernestina Rocha (Sinhá ou Sassá
como era tratada carinhosamente nos círculos familiares) que não
casou, mas no papel de tia - avó ajudou com paciência e ternura
a criar mais de duas gerações.
Mas voltemos ao Alexandre Robatto Filho! Desde criança já mostrava
que tinha uma inteligência rara e brilhante, formando-se ainda muito jovem
em Odontologia, logo iniciando a sua profissão. Porém, ao lado
da atividade de cirurgião-dentista, dedicava-se às artes de uma
maneira plena e desbragada. Era um verdadeiro artista no sentido mais lato da
palavra e exercia com grandiosidade e eloqüências esses atributos
divinos que o Criador lhe concedeu.
Inicia as suas atividades no cinema no ano de 1938, contudo, antes dele encontraríamos
ainda as figuras do Diomedes Gramacho e do José Dias da Costa que perderam
para Alexandre Robatto Filho a primazia de serem os pioneiros do Cinema Baiano,
porque, temendo acidentes nos seus primitivos estúdios, devido às
películas daquela época ser constituídas de material altamente
inflamável e que poderiam provocar incêndios de gravíssimas
proporções, então esses dois senhores perderam grande quantidade
de material cinematográfico. Além disso, com medo de que acontecessem
tragédias maiores, eles incineraram o resto das películas que
tinham em seu poder, destruindo dessa forma o já escasso material que
poderia servir de base, de referências para o estudo da história
do cinema na Bahia.
Dessa maneira, o pioneirismo do cinema na Bahia fica sendo patenteado exclusivamente
a Alexandre Robatto Filho que iniciando naquela época, em 1938, ao longo
de 25 preciosos curta-metragens de arte, folclore, músicas e folguedos
regionais, bem como documentários sobre a Bahia do seu tempo, conseguindo
reunir valioso acervo constante de 22 títulos que foram contratipados
e copiados pelo Departamento da Imagem e do Som da Fundação Cultural
do Estado da Bahia, tendo o apoio da Embrafilme e da Cinemateca Brasileira,
em São Paulo.
Alexandre Robatto Filho teve uma influência bastante acentuada pela escola
dos documentaristas ingleses, onde se sobressaíram o Flaherty e o Grierson,
nas décadas de 1930 e 1940. Em 1949 o Robatto Filho saiu das bitolas
substandard e parte para o filme de 35 mm, quando forma uma equipe onde encontramos
os nomes do Semírames Seixas, Alfredo Souto de Almeida, do maestro Paulo
Jatobá, Joaquim Euclides, do Manoel Pinto Ribeiro, do arquiteto e fotógrafo
Sílvio Robatto e do artista plástico e amigo Carybé.
Dentre os inúmeros títulos deixados à História
do Cinema na Bahia por Alexandre Robatto Filho, poderíamos citar somente
alguns deles, tais como: Vadiação, Entre o Mar e o Tendal,
Quando o Chico Foi Preso, Festa do Hawaí, Invenções, Carnaval,
Exposição Pecuária - 1949, Caxixi, Favelas, V Exposição
de Animais, S/A Wildberger, A| Marcha das Boiadas, Pecuária Baiana -
1953, Igreja, Desfile dos Quatro Séculos, Xaréu, Ginkana em Salvador,
Regresso de Marta Rocha, Águas da Bahia, Organizações Suerdieck,
Um Milhão de KWA etc.
Considerado "um homem de sete instrumentos" pelo próprio escritor
e amigo Jorge Amado, vamos encontrar o Alexandre Robatto Filho poeta
ao lado dos iniciantes daquela ocasião, tais como: Sosígenes Costa,
Carvalho Filho, do inesquecível e querido amigo Hélio Simões,
Enrico Alves, Jair Gramacho, do meu mestre Carlos Eduardo da Rocha, do saudoso
e sempre alegre Clóvis Amorim, do Alves Ribeiro e muitos outros como
ainda os artistas plásticos Carlinhos Bastos, Mário Cravo e o
próprio Carybé.
Conta-se que na época do falecimento do Vadinho, em pleno domingo de
carnaval na Bahia (vide Dona Flor e seus Dois Maridos) o Alexandre Robatto
Filho declamou no exato momento em que o caixão do Vadinho baixava à
sepultura, aqueles conhecidos e decantados versos viperinos, os quais, a exemplo
dos poemas de escárnio e mal-dizer do poeta seiscentista Gregório
de Matos e Guerra ou ainda dos versos maravilhosos e também ainda incompreendidos
do meu amigo e poeta Antônio Short, correram como um rastilho pelas ladeiras,
becos, ruelas e ruas apertadas e acanhadas da Bahia e tinham como título
solene, pomposo e antes de tudo barroco: "ELEGIA À DEFINITIVA MORTE
DE WALDOMIRO DOS SANTOS GUIMARÃES, VADINHO, PARA AS PUTAS E OS AMIGOS".
Naquela época, os versos que brotaram sonoros e barrocos dos lábios
profanos e gloriosos do Alexandre Robatto Filho, nos primeiros momentos foram
atribuídos, quanto à sua verdadeira autoria, a inúmeros
poetas da cidade, contemporâneos do inominável Robatto Filho. Mas
todos chegaram uníssonos à conclusão de que com o estro,
a perfeição, a galhardia, a harmonia lírica e sensual,
junto com a magia e aquele jeito jocoso e sacana com que foram artisticamente
escritos, só poderiam serobra de um Artista-Mais-Que- Perfeito
e este era, sem sombras de quaisquer dúvidas, o próprio Alexandre
Robatto Filho!
Acrescente-se que o Alexandre Robatto Filho já era bastante conhecido
das noites baianas, dos saraus, encontros e tertúlias artístico
- literárias como o Rei Mundial do Soneto, pois tinha escrito
até aquela ocasião cerca de "20.865 entre decassílabos
e alexandrinos de arte - menor e de arte maior e anacíclicos"
(vide Dona Flor e Seus Dois Maridos).
Na área da literatura romanesca, nos deixou dois livros, um publicado
e outro ainda inédito. O que foi publicado chama-se Raimunda Que Foi
- Uma Estória da Bahia, editado em 1976 pela Editora José
Olympio e que tem como pano de fundo a zona do Recôncavo Baiano, onde
a estória se passa na cidade fictícia de São Bartolomeu
do Recôncavo, tendo como figura central a jovem Raimunda, uma guapa
e gostosa mocinha de apenas vinte anos de idade, cabelos escorridos, morena
e de coxas roliças e grossas, exemplo típico das mocinhas criadas
em cidades atrasadas de interior que quando perdem o cabaço, saem como
que fugidas, às escondidas, dos lugarejos onde foram criadas e buscam
o anonimato nos grandes centros urbanos, a fim de engrossar ainda mais esse
filão interminável de mulheres que irmanadas sob o mesmo véu
de infortúnio e pecados, proliferam unidas na sua única desgraça:
a perda do indefectível cabaço!
Além da Raimunda, encontramos nesse livro a figura andrógena
do Bernardino, bichona louca convicta e atuante que tenta retornar ao
mundo dos machões, através dos encantos da ardente e sedutora
Raimunda. O romance se desenrola envolvendo personagens reais e imaginárias,
vivendo situações cômicas, engraçadas e picarescas.
O universo mágico da literatura de Alexandre Robatto Filho nos dá
um autêntico retrato do Recôncavo Baiano durante a sua fase áurea
de industrialização e fúlgido progresso, num período
em que o próprio Robatto Filho disse "não haver data",
mas que podemos situá-lo entre as décadas de 1940 e 1950.
Como dissemos acima, a estória da Raimunda traz à baila figuras
reais que também participaram da trama, como exemplo o meu avo materno
Dr. Manoel Francisco de Oliveira Bahia, o célebre Dr. Bahia,
engenheiro santamarense que tinha se formado em engenheiro agrônomo, mas
havia deixado as suas reais atribuições para se dedicar ás
atribulações forenses. Exercia as funções de rábula,
atividade que o torna afamado e conhecido em toda a região. O Dr.
Bahia era casado com a jovem professora Perpedígna da Cunha Costa,
filha do primeiro casamento da também professora Perpedígna Amélia
da Cunha Costa com o seu primeiro marido, Ignácio da Cunha Costa. Logo,
a esposa do Dr. Bahia seria também tia do Alexandre Robatto Filho,
isto porque, quando a Perpedígna Amélia da Cunha Costa casou-se
pela segunda vez com o Prof. Ernesto Rocha, teve como filha a Camila Rocha,
que futuramente seria a mãe do nosso cineasta baiano.
Numa das passagens do romance ora em comento, o Robatto Filho narra que o meu
avô, o Dr. Manoel Bahia, estava a necessitar de uma montaria para
visitar o senhor Dílson, numa fazenda próxima ao município
de Santo Amaro da Purificação, denominada São José
dos Caboclos; então o Dr. Bahia solicita do seu amigo, o Coronel
Possidônio, uma mula emprestada. O animal prontamente lhe é entregue.
Todavia, o Dr. Bahia nesse ínterim fica impossibilitado de realizar
essa visita ao senhor Dílson e devolve a mula ao Coronel Possidônio
com um bilhete escrito no inconfundível estilo, cujo teor verídico
é exatamente o que se segue:
"Meu Eminente Amigo,
Efusivos saudares!
Devolvo a sua nobre mula, pura e virgem como me mandou, por não ter sido
preciso servir-me dela.
Com os sinceros agradecimentos do cativo,
Dr. Bahia!
O segundo trabalho literário do Alexandre Robatto Filho se intitula:
"O.D.A. - Organização Demo-Angelical" e foi escrito
no Natal de 1977, após o Robatto Filho ter se recuperado de um acidente
circulatório que quase antecipa a sua ida ao Céu. A história
é contada com o gosto e tempero baianos que tão bem caracterizam
o seu estilo jocoso inconfundível. Encontramos nas suas páginas
o retrato autêntico da saudosa cidade do Salvador boêmia, dos idos
da década de 1920/30, com as suas roletas, bacarás, cassinos e
demais casas de jogo funcionando regularmente. Era a época do Cassino
Baiano que se localizava na Rua de Baixo (atual Rua Carlos Gomes), onde
havia funcionado o ex-Diário de Notícias. Naquela época
em Salvador aconteceu o histórico episódio "quebra-bondes"
citado pelo Robatto Filho de maneira fugaz e que o escritor Jorge Amado registra
com amplitude no seu livro "Tenda dos Milagres", através
do herói e bedel Pedro Arcanjo.
O terceiro livro do Alexandre Robatto Filho é um trabalho de "Memórias"
que não foi editado em razão da sua morte, ocorrida em novembro
de 1981, aos 73 anos de idade. Tive a oportunidade e exclusividade de ter em
mãos os originais desse trabalho, quando a pedido do meu tio Robatto
tive o prazer de ler e reler todo o seu conteúdo e revisá-lo,
devolvendo-o posteriormente. O mencionado livro é repleto de ilustrações
e desenhos que o próprio Robatto Filho executava com zelo e carinho
a fim de ilustrar a presente obra. Trata-se da história da Família
Robatto, a sua vinda para o Brasil, a sua chegada na Bahia, a ida para a cidade
próxima de Alagoinhas, a fazenda, a roda d'água, a construção
da estrada de ferro daquela cidade onde trabalharam os seus ancestrais etc.
Esperamos que algum dia a Fundação Cultural da Bahia, a Academia
de Letras da Bahia através dos seus ilustres e iluminados pares, ou mesmo
historiadores e pesquisadores culturais do nosso estado, tais como a querida
mestra Consuelo Pondé de Sena, o poeta, historiador e memorialista baiano
Gilfrancisco, o competente biógrafo João Carlos Teixeira Gomes
ou mesmo a Myrian Fraga reconheçam no futuro o labor literário
do Alexandre Robatto Filho e também o coloquem à altura do Alexandre
Robatto Filho cineasta, como há anos atrás procedeu acertadamente
a Fundação Cultural do Estado, quando deu o seu nome à
Sala de Cinema que ocupa hoje lugar de destaque nas suas dependências.
Esperamos que os órgãos culturais do nosso estado, ligados não
só à História do Cinema na Bahia mas também à
divulgação da sua História Literária, Artística
e Folclórica, consigam trazer ao conhecimento dos mais jovens esse maravilhoso
legado executado pelo Alexandre Robatto Filho, que nos deixou um patrimônio
imenso não somente na área cinematográfica, mas sobretudo
na área de pesquisa e divulgação do nosso folclore, da
nossa literatura, dos nossos costumes e tradições que devem ser
continuamente preservadas, a fim de que estoriadores e jornalistas menores
e mal informados não continuem a ventilar de maneira displicente,
irresponsável e imoral a HERESIA sem sentido de que o pioneiro do Cinema
na Bahia teria sido o Glauber Rocha! O Alexandre Robatto Filho sim, esse
foi o verdadeiro PIONEIRO DO CINEMA NA BAHIA, enquanto o cineasta Glauber Rocha
foi apenas o CRIADOR DO "CINEMA NOVO"!
Poderíamos falar também do Alexandre Robatto Filho pintor,
desenhista, artista plástico e ilustrador. No seu apartamento situado
no elegante bairro do Campo Grande, nesta Capital, hoje conservado pela
prima Yeda Stazy, se encontram retratos da Família Robatto pintados
pelas mãos hábeis e destras do Robatto Filho. Ao lado das suas
pinturas encontramos as fotografias que o mesmo realizava e um sem número
de fotos-artísticas e documentais que hoje se constituem num valioso
acervo pelo alto valor e significado artístico que representam. Como
podemos verificar, além de Cirurgião Dentista, foi ainda cineasta,
artista plástico, escritor, poeta etc. além de ser ainda um dos
pioneiros do Rádio Amadorismo na Bahia. Foi Professor Catedrático
da cadeira de Radiologia da Universidade Federal da Bahia - UFBA onde
exerceu com garbo e nobreza as suas funções.
Trabalhou ainda no Departamento de Educação Superior e de Cultura
da Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Bahia, em diversos
cargos de assessoria e escreveu também inúmeras obras de caráter
científico e pedagógico, as quais deveriam ser resgatadas e atualizadas,
a fim de integrarem o nosso patrimônio cultural. Finalizando, o Alexandre
Robatto Filho foi um homem completo em todos os sentidos e cito apenas uma definição
de uma criança de apenas quatro anos de idade, o seu neto Lucas Robatto,
ao defini-lo para as pessoas da família: "VOVÔ ROBATTO SABE
TUDO... VOVÔ ROBATTO SABE MAIS DO QUE DEUS!"
Quem sabe se o pequenino Lucas não tinha razão?