O acento que ela mais gostava era !. Gostava tanto que só usava ele.
A mãe que sabe: quando era pequena a menina fazia cara de brava, cerrava
os dentes e !!!, não queria comer salada no almoço. Chegava a ser
engraçado quando lhe perguntavam coisas banais, pois
todos já sabiam o que iriam escutar. Era sempre sim!, não!, mais
ou menos!. Até o mais ou menos. O maior dos meios-termos vinha com imponência.
E assim ela cresceu, remedando para lá e para cá, acompanhando tudo
que dizia, os três tracinhos-pontos.
Não queria mesmo saber de outra coisa. !, . , ? , escolhe um: !!!. O gosto
era quase um amor. Perguntava afirmando, afirmava afirmando mais ainda e para
botar um ponto no final o tracinho sempre vinha por cima.
Na escola a professora já não mais a chamava pelo nome, apenas levantava
a cabeça e olhava, assim como quem dá presença com a ausência
da palavra. Não adiantava muita coisa, a menina logo lhe disparava um !.
Quem mandou não pronunciar seu nome? Quem mais se irritava era a professora
de português. Falava assim: mas minha filha, tentando pela doçura
o convencimento, e se você misturar com outras coisas? Pode ser !? ou ?!?
ou então !. ou !,. Não adiantava muito, nem as combinações
esdrúxulas que inventara na hora mudaram a menina. A essa altura vocês
já imaginam o que a professora teve como resposta. Pior foi ver a professora
usar uma de suas próprias sugestões como desculpa para a diretora:
?!?. Numa cara assim de quem não sabe que sinal usar para explicar o fracasso educacional.
No recreio quem se divertia eram os meninos. Pura levadice, zombar da condição
da coleguinha. Se escondiam atrás das árvores, ficavam a espiar,
como se de tocaias estivessem, e ao ouvirem os passos dela, tacavam-lhe pontos
aos bocados. Só para verem-na instantaneamente disparar tracinhos para
todos os lados. E se riam e se rolavam. Numa malvadeza que deixa saudades.
Mas os tempos das brincadeiras nunca são para sempre.
Um dia, ficou assustada quando cruzou a árvore e um menino apareceu. Mas
estranhamente não lhe tacou um pontinho. Ficou parado, como quem tenta
pela primeira vez fazer uma pergunta, mas não fez. Você não
vai me tacar um pontinho? perguntou ela, meio sem jeito. Ele balançou a
cabeça, meio que dizendo "não, senhora". Mesmo que ela
não fosse uma senhora. E ela sem entender nada, não teve coragem
de disparar um tracinho-ponto sequer. Esperou dois minutos. Dois minutos é
muito tempo para se esperar por uma pergunta, mas ela não sabia mesmo o
que fazer, então esperou.
Ele ainda continuava trêmulo em sua frente, a boca tremendo igual onda quando
pedra cai no lago. Ela logo se impacientou, aquela espera enorme tinha deixado-a
com muita fome. Jogou dois tracinhos-pontos, como força de hábito
e foi-se embora.
Foi quando ele resolveu atacar a pedrinha. E acertou em cheio os tracinhos. Não
em cheio porque poderia ter quebrado, o golpe foi tão leve que só
entortou os tracinhos. Cada um ficou com uma pequena curva bem no meio do traço.
O engraçado é que cada um ficou com uma curva para um lado, como
se teimassem com a física e formassem um coração. É,
um coração de interrogação.
A menina ficou tão surpresa que !!!. E correu em disparada para casa. Corria
de fome e não exatamente de felicidade. Mas era a primeira vez que seus
tracinhos tinham mudado e ela tinha gostado. Alguém gostava dela. E ao
correr soltava tracinhos pontos. O menino achou que era de felicidade. O estômago
achou que era para anunciar a fome. Mas na verdade nem ela sabia ao certo porque
soltava aquilo.
No outro dia, ele ficou a esperá-la no portão. É assim que
os namorados fazem, não é? Mas a menina distraída, como sempre
estava naquela hora, desapercebeu-se do menino no portão. Talvez estivesse
tão feliz por se lembrar do lanche de ontem e por ter adorado seu novo
pontinho traço que nem viu o responsável por aquilo tudo lhe esperando.
Responsável só pelo pontinho traço porque lanche tão
gostoso só a mãe dela conseguia fazer.
Na aula ele ainda tentou chamar sua atenção. Mas ela, menina estudiosa,
disparava tracinhos-pontos para professora que nunca chamava seu nome na chamada
e para os alunos que perturbavam a aula. Sim, eram muitos tracinhos pontos voando
pela sala. Ficava quase impossível ouvir o que ele dizia.
Mas no bolsinho do vestido ela guardara o mais especial dos tracinhos pontos:
aquele que tinha sido delicadamente atingido pela pedrinha.
No recreio foi atrás do menino, não sabia ainda muito bem pra quê,
mas foi. E rodou atrás do pátio inteiro, foi no campinho, na lanchonete,
olhou atrás das árvores mas nada de achar o menininho. Até
que o viu no parquinho construindo castelos, com uma outra menina. Pareciam felizes.
E mesmo sem vê-la foi como se tivesse jogado uma pedrinha e acertado no
tracinho ponto especial que ela guardava no bolsinho do vestido.
De repente, escorrendo feito água por um furinho do bolsinho, saíram
três pontinhos. Assim sem nenhum traço em cima. Ficou um pouco triste
e decidiu pedir para mamãe nunca mais deixar seus vestidinhos furarem.
Era assim que os amores acabavam. E nunca mais tacou um tracinho ponto.