A Garganta da Serpente
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Meus paralelepípedos

(Ivaldo Gomes)

Toda vez que sento aqui é como se fosse o exercício diário da labuta em uma pedreira. Todo mundo acha fácil escrever. Eu também. Mas desde que você tenha o que dizer. Escreve-se para alguém. Sempre para alguém. Mesmo que esse alguém seja você mesmo. Sábado passado fui a Belém, Caiçara e Logradouro. Eu e Ana Maria. Fomos aplicar uma prova da Olimpíada de Matemática. Esse é o terceiro ano consecutivo que faço isso sempre em outubro. Pra não variar, a estrada continua sem sinalização e mal conservada. O que demonstra o desprestígio dos prefeitos e dos 'representantes' políticos da região do brejo paraibano. Uma tristeza ver toda uma região abandonada a sua própria sorte, pela falta de responsabilidade do Departamento de Estradas e Rodagem - DER - da Paraíba. Aquilo não é uma estrada é um corredor da morte.

Mas queria mesmo falar de uma sensação que fui impregnado quando no caminho para Logradouro. Lá tem uma pedreira - dessas artesanais - que os homens ficam cortando paralelepípedos em cima do lajedo. Vão cortando o granito, cortando e amontoando aos montes os paralelepípedos. Um sol inclemente e os homens de chapéus de palha cortando o lajedo e retirando lascas e mais lascas de pedra, para depois recortar em forma de paralelepípedos. Na hora me passou a idéia do trabalho do escritor, autor, escrevente. É como cortássemos pedra, pedaço a pedaço, e no fim aquele amontoado de textos, poemas, histórias, escritas como quem corta granito. Escrever, dizer, falar as coisas, não é fácil. Parece ser mais não é.

Nessas horas lembro do trabalho que Srila Prabhupada teve para escrever o Bhagavad Gitã - como ele é - dentro da tradição védica, seguindo todo um 'param para' (ordem, corrente, sucessão de mestres espirituais autorizados). Imagine você na Índia da década de cinqüenta escrevendo em inglês, a partir do sânscrito e do alfabeto devanagari - transliteração do sânscrito - com significado de palavra por palavra e verso por verso. Formando um todo completo e harmonioso? Um trabalho hercúleo. Que só um ser absorvido e tocado pelo sopro da bondade divina teria condições de fazê-lo. E lembrar que seu primeiro texto original - mais de setecentas páginas datilografadas - foi trocado por comida por sua primeira esposa. Ela na sua ignorância não sábia o significado daquelas páginas. Ele refez tudo de novo. E hoje existem milhões de cópias espalhadas pelo mundo afora.

Tem horas que fico a imaginar Camões escrevendo Os Lusíadas. Verso a verso, num interminável roteiro. E Cervantes com seu Dom Quixote de La Mancha? E o maior poema épico do mundo o Mahabarata com seus milhares de versos? Uma vez perguntaram ao poeta Fernando Pessoa como ele conseguia escrever tanto. E ele respondeu: 'sem pensar nisso'. Eu acho que é esse o segredo. Não pensar em quantos paralelepípedos eu cortei hoje da rocha natural e lapidei em pedras para calçar um mundo em que as ruas sejam melhores. Mais seguras e que a bondade faça caminhos sobre os meus paralelepípedos. Pois não tem outro sentido a não ser esse. Se ficarmos pensando na quantidade deles nunca os faremos. Imagine os egípcios refutando o argumento de que era muita pedra pra se construir uma pirâmide?

Pois tem sido assim. Pego o meu cinzel nas pontas dos dedos e demarco a área da pedreira. Risco as idéias e vou em frente. Corto dali, recorto de lá e as coisas vão tomando forma. Quando menos você vê está feito. E olhe, se tentar fazer de novo a mesma coisa não sai mais do mesmo jeito. Pois o cinzel já não é o mesmo e a pedra a ser cortada já é outra. Realmente não se passa duas vezes no mesmo rio. Na volta ele já é outro rio. Mas ai você insiste em continuar cortando pedras, jogando paralelepípedos nas ruas. Tem horas que me pergunto se não seria melhor as ruas ser só de chão batido? Mas ai é outra tecnologia para se fazer a mesma coisa. Pois a necessidade de andar nas ruas será a mesma. Eu sei o esforço de cortar paralelepípedos virtuais. E sei como colocá-los no chão. Só lhe peço que pise firme e que se for possível caminhe feliz por eles.

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