A Garganta da Serpente
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A crise é moral

(Ivaldo Gomes)

A crise brasileira é eminentemente moral. Não a moral dos escândalos, mas a moral que está por traz do discurso de dominação. Ilustro isso com dois simples e históricos problemas. Um, o dólar que quando sobe tudo sobe (e quando baixa nada baixa) e outro com as alíquotas de impostos embutidos em todos os produtos e serviços de forma horizontalizada numa sociedade estratificada na vertical. Os mais em cima, os da ponta da pirâmide social, possuem o direito à vista do paraíso na terra. Esse o marketing moralista dos dias de hoje. Quem tem mais, tem mais cidadania. Isso é patente.

Mas há quem diga que isso sempre foi assim. E daí pra frente vem toda uma 'teoria do comodismo', da normose, a justificar que até Deus é também responsável por tudo isso. É moral o discurso da educação, da saúde, do trabalho, da segurança pública. É moral o discurso dos três poderes e de suas forças armadas até os dentes. É um discurso moral onde a estratificação fica patente. A hierarquização é a ordem. E aí de quem se atrever a dizer o contrário. É o poder humano sobre os humanos, exercido pela força do poder econômico. Que se utiliza do poder político para se legitimar, se perpetuar no poder que não pode fazer justiça social. Logo não nos serve.

Incomoda-me profundamente, como membro da sociedade, perceber que se age com dois pesos e duas medidas para várias coisas diferentes no Brasil de hoje. Como aceitar, calado sem nenhuma explicação plausível, que quando o dólar baixa os preços não baixam? Mas quando ele aumenta aumentam de preço. Por quê? Nem passando Mantega na sabatina matinal isso fica explicado. E fica a sensação de que estamos sendo roubados em nossa boa fé, índole, cidadania e recursos. Direitos e deveres iguais? Os brasileiros cada dia mais possuem mais deveres e menos direitos.

Outra justificativa que nunca entendi foi a que é dada para o salário mínimo: 'É mínimo porque é o mínimo?' Entendeu? Nem eu. Pois para se pagar determinadas e variadas pessoas 'mais iguais' do que outras, ai pode-se pagar até mais de R$ 100.000.00 mil reais (com todas as mordomias incluídas). Mas vão explicar que já foi pior. Pior? Queria ver as autoridades competentes vivendo com apenas um salário ínfimo de R$ 380,00 reais por trinta e um dias consecutivos e 44 horas trabalho por semana. Pelo menos uma vez por ano. O salário do trabalhador brasileiro deveria ser testado pelo Presidente da República nos seis primeiros meses do seu mandato. E seguir o mesmo exemplo os Governadores e os prefeitos. Talvez ai, quem sabe, eles tomassem noção do que é tentar ficar vivo - sobreviver - com apenas R$ 380,00 reais.

Gostaria também de solicitar de alguém mais esclarecido, que nos explique a justificativa moral e ética de se cobrar imposto de forma horizontalizada - para todos e de forma igual - quando sabemos que o poder aquisitivo de cada família, depende da estratificação social em que ela se encontra. Pois se não, vamos ter que continuar a 'aceitar' uma atitude abusiva e desumana que é cobrar a mesma alíquota nos preços dos produtos e serviços para todos e da mesma maneira. Por exemplo: você acha justo que uma pessoa que ganha R$ 380,00 reais pague os mesmos 40% de impostos embutidos num quilo de açúcar que uma outra pessoa que ganha dez salários mínimos?

Volto a repetir o que disse em artigos anteriores: é preciso se fazer justiça no Brasil. E a boa justiça começa de casa. Assim diz o ditado popular. É inadiável a reforma tributária onde fique claro que quem ganha mais paga mais e quem ganha menos paga menos. Ou não paga nada até ter alguma coisa para pagar. Num país rico de tudo como o nosso não se admite mais que vivamos nessa pobreza de atitudes. Chega de se fazer apenas e só 'política'. Política de interesses, diga-se de passagem. Precisamos renovar a moral brasileira e respirar um outro ar. Um ar de mais liberdade, de mais responsabilidade, de mais redistribuição de riquezas e oportunidades. Um ar de inclusão social como nunca foi visto em nosso país.

Precisamos de uma outra educação. De um outro sistema de saúde e de uma outra política de segurança pública onde não se leve apenas em conta à compra de carros, armas, balas e cassetetes. Uma política de segurança que comece tratando decentemente o seu quadro efetivo de funcionários, mas que se estenda necessariamente em distribuição de assistência social decente, com salários justos também para a população. Segurança Pública rima com segurança social. Pois está mais do que provado que a violência maior é a pobreza que a tudo gera. Temos que romper esse círculo vicioso de miséria que está instalado no Brasil desde a sua colonização.

A crise é moral sim senhor! Pois pela moral do colonizador, 'um mundo de brancos', com uma cultura branca, onde o diferente, o diverso de si, é tratado como uma coisa de segunda categoria. Existe na 'cultura' da cultura branca certo endeusamento de que o branco é a raça pura (???). Tremenda besteira. Mas essa besteira se reflete na moral branca de se fazer uma escola (várias escolas) onde a 'cultura dos diversos' não é explicada. Explicitada. É 'escola de diversos', só que com a explicação do colonizador. Olhem as escolas públicas brasileiras. É uma escola de segunda classe. Até quando?

Na saúde o discurso é muito pior. Só tem mesmo assistência médica quem tem dinheiro e ponto. Sejamos pragmáticos. O público na saúde é um SUSplício. E olhe que tem dinheiro por todos os lados. Só de CPMF já nos tiraram o fígado. Mas nada funciona direito. É só discurso e conversa fiada. Um fiado que sai caro, pois a irresponsabilidade que se faz com a saúde do povo brasileiro é caso de polícia. E não é de agora. É uma falta de política pública endêmica ao longo de décadas. Amealham-se fortunas nas costas da falta de saúde brasileira.

É moral a crise por que passamos, pois admitimos que as coisas continuem como estão. Não vejo - sem moralidade nenhuma - que as coisas estejam num caminho onde teremos um Brasil mais justo nos próximos dez anos. Os nossos dirigentes, eleitos (nem sempre por todos de nós), precisam acordar para a realidade e deixar de fazer apenas 'política partidária' e fazer um pacto por mudanças profundas no nosso 'que fazer' público. A sociedade por sua vez, precisa participar mais, se envolver mais. A sociedade hoje só se envolve com eleições. E isso é muito pouco. Pouquíssimo.

Evitei até aqui falar de escândalos e falcatruas. Tão em moda no noticiário brasileiro das últimas três décadas. Entra um escândalo e sai outro. Parece até cartaz de cinema. Alguns viraram filmes de verdade. Não acho que o mau exemplo seja ensino-aprendizagem para ninguém. A raiz do problema está na formação moral do cidadão. Não na imoralidade do que se quer que seja entendido como moral. Moral não é status social. A verdadeira moral é revestida de ética por todos os lados. E se a moral parte de uma ética indelével não poderá deixar de ser justa. E como justa fará justiça. E justiça seja feita, o Brasil anda muito desigual.

Cansei-me dos discursos (e alguns me acusarão de estar fazendo um). Mas temos que dizer o que pensamos. E por quem dobramos nossos sinos, signos e sinais. A comunicação é o que nos tem salvado das catástrofes da super população. Pergunte a qualquer um operador de trânsito, em qualquer sistema de deslocamento que você queira. A comunicação e a bondade é o que nos resta. Pois até a ideologia tomou partido. E hoje serve ao discurso do chefe de plantão. E tem cor, cara e brasão. Mas o povo continua a olhar pro chão.

Até quando?

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