A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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No topo do meu Everest

(Ivaldo Gomes)

Quando se chega aos cinqüenta anos, chega-se na metade da vida. Pelo menos na primeira metade. É um feito nos dias de hoje, depois de conseguir sobreviver a tantos governos. Vindo de família simples, tinha tudo pra morrer nos primeiros cinco anos. Escapei de pestes, acidentes, abalos sísmicos e bebedeiras. Fiz de tudo um pouco nessa primeira metade da vida e aqui cheguei. No topo do meu Everest. Agora contemplo ao meu redor e vejo longe. Missão cumprida! Em parte, faltam os outros cinqüenta. Agora é se preparar para a descida.

Dizem que tudo que desce, já está meio caminho andado. É hora de curtir a passagem, rever os espaços, refazer os laços e só levar o estritamente necessário. O objetivo é chegar lá embaixo desprovido de toda a bagagem da viagem. Deixar aqui o que é daqui e apenas levar o que nos servirá no outro lado da montanha. Lá de cima, do meu Everest, percebi muitas coisas. E uma delas foi de que para valer a pena a subida ao pico mais alto de cada um, tem que valer a viagem. Não pode ser um sacrifício. Um peso morto carregado nas costas. Temos que subir com nossas próprias pernas ou ficamos a contemplar a mesmice da falta de ousadia. Precisamos querer.

Descer é se aprofundar no caminho. Caminho já percorrido e que muitas das vezes se tirou as lições erradas. Agora é dever fazer o certo e não pisar em seixos escorregadios. Olho vivo na paisagem, com os pés no chão. É bom ter uma corda de segurança, como um cordão umbilical ligado no nascedouro da vida. É hora de contemplação e crescimento. É hora de se retirar para se preocupar com coisas bem mais sérias que apenas pose, posses, egos desvairados por títulos, colunas e calúnias sociais. Na descida todo conhecimento ajuda. Principalmente quando já se sabe aonde vai.

Agradecer sempre todas as portas abertas e fechadas. Todas as alegrias e as tristezas. Todos os gestos de benevolência e de intolerância. Na volta nos recordamos de quem realmente somos. E somos tantas coisas em tantos papeis que minha parede poética fica cheia de pergaminhos escritos, pregados como instinto, no varal da vida. Daqui, do topo do meu Everest, o ar é puro e as águias voam no horizonte. Agradeço a Deus por mais essa existência humana. Agradeço por contemplar toda essa imensidão que somos e que podemos ser. Vou descer devagar. Sem pressa. Acender todas as fogueiras que puder. Deixar todas as sinalizações que me for possível. Deixarei também, por onde passar a noite, fugindo do frio ou das tempestades, do tempo, um pouco de sal, arroz e fósforos para clarear o caminho. Acender a fogueira, o fogão da vida.

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