Os tempos são tão vertiginosos e carregados de novas informações,
tudo envolto hoje em dia na estratégia da comunicação do
entretenimento. Por causa dessa nuvem de mediocridade, figuras de elevados serviços
prestados ao Brasil e ao próximo, mesmo sendo da segunda metade do século
vinte ficam ocultas e desconhecidas pelas novas gerações, intoxicadas
de rock, celebridades da TV e esportes radicais.
A Dra Nise da Silveira não foi uma celebridade da TV: é uma glória
nacional. Por certo muita gente da nova geração jamais ouviu falar
seu nome. Era uma psiquiatra brasileira, alagoana da gota. Frágil de
corpo, pequena e muito magra, tenaz como um tigre, lutadora, benfeitora precoce
no tratamento da doença mental. Antes disso foi, na juventude, militante
ativa do Partido Comunista. Ainda nos tempos de Vargas foi atirada na prisão
da Ilha Grande com outro grande nome do País o escritor Graciliano Ramos,
alagoano como a Doutora. Leiam Memórias do Cárcere.
Trabalhava ela em Hospital Público até hoje existente, o Pedro
II, na estação do Engenho de Dentro. Era tempo em que as internações,
os choques elétricos ou drogas pesadas de soníferos eram utilizadas
no tratamento de várias enfermidades mentais e também uma fase
da psiquiatria em que a maioria das famílias entregava os chamados loucos
(uma injustiça) aos então hospícios e os largavam por lá.
Resultado: a piora. Alguns saiam do manicômio apenas ao morrer. Vagavam
anos a fio, de avental sujo, perdidos pelos pátios e os labirintos do
ego desestruturado.
A brava Doutora, aprofundou-se no estudo da esquizofrenia e a partir de alguns
anos descobriu a psicologia profunda do psicanalista Carl Jung, contemporâneo
e ao princípio discípulo de Freud e que depois enveredou por outro
caminho. O mais curioso é que o comunismo daquela época abjurava
tanto a psicanálise, como Jung, pelo fato de não tentarem explicar
o mundo somente pela luta de classes, embora essa existisse como ainda existe.
Nise aprofundou-se no estudo e no trabalho. Anos depois foi à Suíça.
Mostrou a Jung seus trabalhos e dele ficou não apenas divulgadora como,
além de amiga e correspondente regular, ela se aprimorou na forma de
tratamento da esquizofrenia, usando um binômio considerado utópico
pela maioria dos médicos de então: o binômio era tratar
os pacientes caso a caso (nada de generalidades) através da terapia artística
e muito amor. Da terapia artística decorreram condições
para algumas curas ou, pelo menos alívio e melhora. Além disso,
e embora a finalidade não fosse esta, muitos pacientes antes afundados
na alienação da esquizofrenia deixaram obras hoje de fama internacional
pela qualidade e expressividade. Hostilizada no Hospital, resolveu abrir uma
clínica privada pequena, a que chamou de Casa das Palmeiras, sem finalidades
comerciais ou lucrativas. E na qual toda a Direção é voluntária.
Isso, há 50 anos ! A Casa das Palmeiras de lá até aqui,
mesmo reconhecida como obra da mesma importância (em tamanho menor) do
Museu das Imagens do Inconsciente (existente no Hospital Pedro II e também
obra dela), nesses 50 anos acumulou um acervo de trabalhos, de inestimável
valor para a ciência, a psiquiatria, a psicologia, a arte e a cultura.
Pois foi nesse acervo, de valor comercial nenhum, e de alta importância
histórica e antropológica que alguém (ou "alguéns")
tocou fogo na madrugada de domingo último.
Destruir um acervo como este é igual a incendiar uma floresta. Percebem
a razão da minha dor?
Que tal comprar um livro de Artur da Távola? O Jugo das Palavras |