A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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3 de janeiro de 1936

(Artur da Távola)

Hoje é um dia especial para mim: faço setenta anos de idade e trinta, interiormente. Mas as coincidências da data não param aí. Completo dezoito anos de crônicas neste jornal; cinqüenta e dois anos de trabalho, desde os 18 anos, que o jornalista Marcial Dias Pequeno (a quem sempre fui e serei grato) conseguiu-me o primeiro emprego em 1954. Faço, ademais, cinqüenta anos de trabalho (com a interrupção durante a ditadura) de minha atividade como radialista na Rádio MEC, no mesmo ano em que ela empata comigo e também faz setenta anos, desde que Roquete Pinto doou-a ao Poder Público, para que ela observasse (observa) a máxima "Pela Cultura dos que vivem em nossa terra, pelo progresso do Brasil".

Setenta anos, três filhos e duas filhas do coração, dois casamentos, sete netos, fui um ser dividido entre dar uma contribuição à luta contra a miséria e pela justiça com liberdade, que me levou à política, e um temperamento artístico que me temperou para a literatura, o rádio e a TV. Foram vinte anos de Parlamento, quatro de Deputado estadual, quatro de exílio, dois mandatos de deputado federal e um de Senador. Participei da fundação de um Partido Político, tenho vinte e quatro livros publicados e um e-book na internet. Muitas árvores plantadas. Amor dos meus, de desconhecidos pessoalmente, mas irmãos de alma. Capricorniano, sempre lutei lealmente. Nunca fui de briga. Sempre fui e sou, isto sim, de luta. O coração já deu alguns sinais de cansaço, mas o gosto de viver, uma cabeça limpa e o agradecimento diário e permanente a Deus pela vida e o mundo, e a meus ancestrais, pela vida, fazem-me um idoso feliz. Trabalho no que gosto. Jamais me sobrou dinheiro, nem jamais faltou para uma vida regrada e simples. Muito já caminhei: orfandade paterna na infância, colégio interno, CPOR na Cavalaria, Universidade, política, Constituinte de 1987, exílio na Bolívia e no Chile, AI-5 no Brasil, jamais fui herói nem vilão, mas lutei pela democratização dentro da frente legal, tenho o respeito das pessoas, amanho amigos queridos, trabalho naquilo de que gosto. Fiz política por dever, escrevo por prazer. Mais de sete mil crônicas e de trezentas palestras. Algum tempo como professor e crescente capacidade de ver e admirar a beleza da vida. Com uma espingarda imaginária, já eliminei quase todos dos não muitos ressentimentos. Considero que a vida possui três segredos de felicidade: capacidade crescente de compreender, saber em profundidade o que é compaixão, e gratidão permanente por viver. E a grande conquista humana é transformar a sua vida em expressão de seu ser.

Muito amor para dar e receber. Vontade de prosseguir até papai do céu determinar em contrário, ter a capacidade de trabalho da qual fui dotado, havendo nascido com um grande amor (irrealizado) à preguiça e ao ócio criativo.

E, para concluir essas bênçãos, o jornal ainda por cima me dá férias em janeiro. Não é um presentão?

Até a volta em fevereiro, claro, se Deus quiser.

(texto publicado em 3 de janeiro de 2006 - se estivesse vivo hoje Artur da Távola estaria completando 74 anos)

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