A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O Guarnieri exilado

(Artur da Távola)

Vou lhes contar uma breve história, da qual fui parte. Éramos um grupo de exilados políticos brasileiros na Bolívia, esquecidos do mundo, alguns muito jovens, entregues à própria sorte em La Paz, a 3.700 metros, no miolo da cordilheira dos Andes. Corria o ano de 1964. Fomos obrigados a nos exilar muito mais por nossas qualidades e idealismo do que pelos defeitos. Latejava-se-nos o idealismo e alguma ou muita ingenuidade. Eu tinha 28 anos e havia sido Deputado Estadual pelo Rio de Janeiro. Lá se exilaram, também, vários brasileiros honrados, maiores de 40 anos. Alguns passavam necessidades e havia uma de espontânea ajuda mensal, um pouco de cada um, para os companheiros necessitados. Estávamos perdidos do mundo, não possuíamos qualquer notoriedade nacional ou internacional. 28 brasileiros saídos do nível do mar para altura descomunal dos Andes. Vários adoeceram ao começo. Era inverno. Frio e desolação misturados à esperança de voltar ao Brasil.

Um belo dia surgem por lá, cansadíssimos e ainda zonzos pela a(des)ventura, Gianfrancesco Guarnieri e Juca de Oliveira, já dois atores conhecidos, um deles autor revelado, o Guarnieri. Chegaram sem roupas suficientes adequadas ao frio. Auto exilaram-se na Bolívia não através da Embaixada daquele país, como nós, porém no peito e na raça: foram em um trem caindo aos pedaços e cheio de animais, até Santa Cruz de La Sierra (Bolívia, mas nível do mar) e de lá, trecho em ônibus e trecho em outro trem gelado, subiram a cordilheira e desembarcaram em La Paz. Imaginem, em 1964, com receio de serem reconhecidos e presos nas fronteiras, sem passaporte ou salvo conduto, ir de São Paulo a La Paz! Odisséia, do nível do Mar a quase 4 mil metros de altura. Logo os cercamos de carinho, agasalho humano, explicações sobre a vida na Bolívia, a nenhuma solidariedade do Governo Paz Estensoro conosco, a não ser a aceitação do pedido de asilo, inevitável por lei internacional. E uma vez lá, a perseguição covarde da Embaixada Brasileira, movida por um direitista dedo duro do Itamaraty, chamado Batalha. Lutamos e superamos tudo isso.

A chegada e a permanência dos dois foi uma glória para nós e o cimento de uma grande amizade. Honestos, inteligentes, engraçadíssimos, politizados, cultos, corajosos, eles trouxeram um ânimo especial, ajudado é certo, por bolivianos idealistas e generosos. A amizade restou para a vida inteira ampliada pela admiração da obra de ambos. Com Guarnieri ainda convivi no ano da campanha eleitoral de Mário Covas (ah a falta que faz!)

Quanto a recordar! Saudades, aprendizado e vivências profundas de solidão, solidariedade, amizade, coragem para seguir na luta, incerteza quanto ao próprio destino e amor ao Brasil.Ali, ademais de muitos outros heróis da luta pela democracia, conheci a grandeza humana não do genial dramaturgo, mas do ser humano Gianfrancesco Guarnieri (e do Juca de Oliveira) e enquanto a garganta se me aperta em dor pela perda, apresso-me a dar este depoimento.

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