A Garganta da Serpente
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A perda de Raul Cortez

(Artur da Távola)

Raros atores ousam representar o ser em sua variação, aqui engraçado, ali tenso, acolá melancólico, ora colérico ou terno. Não. Os personagens da dramaturgia quando não especialmente qualificada, são representações de conteúdos emocionais cristalizados em um, no máximo em dois tipos psicológicos sempre repetidos pelo ator a cada nova obra. A facilidade de identificar no personagem estados d'alma, características de personalidade ou de caráter, faz parte da estratégia da comunicação de massas. Precisa ser imediata, fácil, realizada sem esforço e sempre peremptória.

Já os atores de formação teatral fogem dos estereótipos e dos facilitários. Raul Cortez era um desses. Típico ator introvertido vivia externamente as situações, porém com predomínio da contenção de gestos e expressões faciais e, no entanto, levava o espectador de teatro, cinema ou o telespectador para dentro dos sentimentos, dos sofrimentos e das alegrias do personagem. Esta é uma característica dos grandes atores. Saber o ponto certo da interpretação; o equilíbrio entre objetividade e subjetividade. Assim era Raul Cortez, ajudado ademais pela natureza porque dono de uma voz bonita e firme, que sabia usar como poucos.

As meias tintas, dúvidas, vacilações, inseguranças, as mudanças de humor, as ciclotimias e esquizotimias próprias ao bicho-homem reaparecem na dramaturgia, projetadas nos personagens. E é necessário um repertório interior de estados de alma e de percepção da psicologia individual do personagem para que ele se destaque e saia da banalidade. Por isso, o grande ator é uma raridade. Gente que representa (mesmo com talento) há muita. Mas grandes atores os há muito poucos. Era o caso dele, repito.

Toda história e todo personagem é sempre a materialização de algum sintoma com o qual o ser humano reage diante de complexidades nem sempre definíveis. Exprimir em gestos olhares respirações, corpo e voz o sintoma indefinível em palavras mas representável, é uma tarefa didática. Ela ensina o ser humano a si mesmo. E torna o ator enigmático. Daí para a surgimento de uma aura, ou de um charme especial, é um passo. Sim, Raul era, ademais, um ator de charme, classe e categoria.

Sua perda é grande para a dramaturgia brasileira. Perdemos alguém capaz de representar o enigma de cada ser, aquilo que nele se percebe de modo enigmático sem que haja uma total apreensão racional do ser humano que está a ser representado (criado?).

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