A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Um pouco de papo cabeça

(Artur da Távola)

Vendo esta situação aparentemente sem solução do Oriente Médio, que ameaça um mundo hoje interligado, e a brasileira, igualmente assustadora, fico a pensar:

Cada opção humana está baseada em sentimentos fundos, alguns dos quais insondáveis. Principalmente em relação à política. Há causas externas, ideológicas e há causas internas, psicológicas. As duas se cruzam e confundem. Ambas valem. E ambas são capazes da perversidade.

Minha geração atravessou várias influências decisivas. Em quarenta anos passou por dentro do marxismo; da mudança no Cristianismo; da entrada do pensamento oriental no ocidente; da psicanálise e da revolução tecnológico-científica. Da globalização. De armamentos atômicos em 22 países. Varejada por essa concomitância de revoluções (exteriores e interiores) minha geração teve que digerir uma evolução e uma transformação maiores que as vividas pela humanidade nos dois mil anos anteriores.

Ao longo dessa invasão de transformações concomitantes, algumas pessoas foram cansando, desistindo ou escolhendo uma só via como preferida. Outros, como eu, preferiram procurar compreender (e incorporar) os aspectos complementares e os contraditórios de cada uma dessas revoluções.

Não é fácil questionar as (próprias) convicções que se vão formando ao longo da vida e tendem a se cristalizar. Ser só cristão, ou só marxista, ou só adepto do pensamento oriental, ou só agente do progresso tecnológico ou só ver o ângulo psicológico das questões é mais cômodo e mais fácil que compreender em extensão e profundidade todas essas revoluções, incorporando o resultado delas à própria vida, processo doloroso e difícil, mas rico de ampla formação do homem integral.

Daí decorre a importância do neo-humanismo que brota de todas essas experiências. O humanismo é o grande fator integrador porque dimensiona a medida humana de todas essas revoluções. Ele une e fecunda partes aparentemente contraditórias. Condiciona os desenvolvimentos materiais e os espirituais ou subjetivos de nosso tempo, realizando, em suma, o metabolismo da incorporação do que serve à vida individual ou coletiva: deste metabolismo, derivam as democracias política, jurídica, existencial e religiosa.

Hoje tombam as utopias do desenvolvimento material que encantaram o século vinte, porém não cai o sentido de progresso inerente a ele. Em vez de progredir, apenas, o desafio é compatibilizar progresso com a felicidade, liberdade e justiça social. Há, portanto, um vetor espiritual ao lado do material. É uma espiritualidade nova, uma subjetividade, um valor imaterial, cultural.

Essa conciliação dolorosa entre atitudes que pareciam díspares é o que caracteriza a visão neo-humanista deste começo de século.

Varejado e fecundado por esse processo, uma homem de minha geração precisa levar toda essa vivência para a política pois: se vivi todas essas transições; se essas revoluções concomitantes passaram por dentro de mim, fazendo efeito, e passei por dentro delas, indo além; se enfrentei o impacto de tantas alterações, tenho o dever de compreender o sedimento delas e aplicá-lo na luta pela democracia que é o regime dentro do qual todas as experiências díspares de um tempo histórico podem germinar e prosperar.

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