Agora que a Copa de 2006 ficará em mãos de países latinos,
o que é um consolo (e nada contra os demais) ouso uma reflexão
sobre o caráter simbólico do futebol, como representação
de vários aspectos da vida, inaprisionáveis pela razão,
embora esta esteja também presente. A propósito, o futebol é
uma enigmática relação entre técnica, planejamento,
brio e acaso. Daí o seu encanto: ser inaprisionável. Por isso
tanta opinião, tantos críticos, comentaristas, tantos achistas
("eu acho"), dissistas ("eu não disse?")...
A reflexão que desejo fazer com vocês provém de um dos mais
antigos conflitos do ser humano, e que existirá sempre, pelo menos no
plano em que vivemos. É o interminável conflito entre verdade
e realidade. A maioria da humanidade acredita que em suas verdades está
a realidade. Esta, porém, é sempre mais rica, renovadora e livre.
E este é o seu lado positivo, até quando ela (realidade) nos contrarie,
vire as costas para nós e até nos machuque, desminta ou desmoralize.
O ser humano se refugia em suas verdades, ou seja, crenças, torcidas,
ufanismos, idéias, opiniões, convicções, ideologia,
fantasias, como respostas para o mistério da existência. Nossa
"verdade" mora em cada campo da existência humana, e seu mecanismo
consiste em negar a verdade do próximo. As pessoas até se matam
por causa de suas verdades.
Por elas ou em nome dessas "verdades interiores e sinceras, ele (o ser
humano) vibra, luta, crê, vive ou morre, aceita, possui valores, virtudes,
defeitos, é "mocinho ou bandido". Em suma, vivemos presos dentro
das bolhas de nossas verdades.
Ocorre que a realidade está do lado de fora das bolhas e é regida
por uma mescla de previsão, antevisão, mistério, acaso,
enigma. A realidade é a maior expressão da liberdade humana. A
verdade de cada um é a maior prisão (ingênua e sincera)
dentro da qual cada ser humano se considera amparado e protegido da abissal
angústia de existir em um mundo que é um grão de areia
no espaço, do qual não se conhece o começo, pensa-se conhecer
o meio e se desconhece o fim.
Por isso a realidade é temida, e a verdade é querida. No entanto
a realidade é a grande mestra e precisa ser querida por nós. Ela
é o ensinamento permanente, a lição do existir, o aperfeiçoamento
de cada vida que, ao chegar a seu ponto máximo, sobrevém à
velhice, e a realidade acaba por (nos) levar a melhor. E, só depois da
vida, pode ser que tenhamos conhecimento da realidade ou de parte mais ampla
da mesma.
O futebol, a vitória, o poder, o domínio, as ideologias, as crenças
são a representação das verdades com as quais nos defendemos
da realidade. E nos defendemos, porque não aprendemos o grau maravilhoso
de criatividade, adesão ao novo, deslumbramento pelo acaso, agradecendo
à razão por nos permitir lidar com ela, o que é difícil
e muito raro.
No delírio ou na decepção de um torneio que é mundial,
todos os países e seu povo entram com as suas verdades e saem com a sua
realidade.
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