A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Verdade versus realidade

(Artur da Távola)

Agora que a Copa de 2006 ficará em mãos de países latinos, o que é um consolo (e nada contra os demais) ouso uma reflexão sobre o caráter simbólico do futebol, como representação de vários aspectos da vida, inaprisionáveis pela razão, embora esta esteja também presente. A propósito, o futebol é uma enigmática relação entre técnica, planejamento, brio e acaso. Daí o seu encanto: ser inaprisionável. Por isso tanta opinião, tantos críticos, comentaristas, tantos achistas ("eu acho"), dissistas ("eu não disse?")...

A reflexão que desejo fazer com vocês provém de um dos mais antigos conflitos do ser humano, e que existirá sempre, pelo menos no plano em que vivemos. É o interminável conflito entre verdade e realidade. A maioria da humanidade acredita que em suas verdades está a realidade. Esta, porém, é sempre mais rica, renovadora e livre. E este é o seu lado positivo, até quando ela (realidade) nos contrarie, vire as costas para nós e até nos machuque, desminta ou desmoralize.

O ser humano se refugia em suas verdades, ou seja, crenças, torcidas, ufanismos, idéias, opiniões, convicções, ideologia, fantasias, como respostas para o mistério da existência. Nossa "verdade" mora em cada campo da existência humana, e seu mecanismo consiste em negar a verdade do próximo. As pessoas até se matam por causa de suas verdades.

Por elas ou em nome dessas "verdades interiores e sinceras, ele (o ser humano) vibra, luta, crê, vive ou morre, aceita, possui valores, virtudes, defeitos, é "mocinho ou bandido". Em suma, vivemos presos dentro das bolhas de nossas verdades.

Ocorre que a realidade está do lado de fora das bolhas e é regida por uma mescla de previsão, antevisão, mistério, acaso, enigma. A realidade é a maior expressão da liberdade humana. A verdade de cada um é a maior prisão (ingênua e sincera) dentro da qual cada ser humano se considera amparado e protegido da abissal angústia de existir em um mundo que é um grão de areia no espaço, do qual não se conhece o começo, pensa-se conhecer o meio e se desconhece o fim.

Por isso a realidade é temida, e a verdade é querida. No entanto a realidade é a grande mestra e precisa ser querida por nós. Ela é o ensinamento permanente, a lição do existir, o aperfeiçoamento de cada vida que, ao chegar a seu ponto máximo, sobrevém à velhice, e a realidade acaba por (nos) levar a melhor. E, só depois da vida, pode ser que tenhamos conhecimento da realidade ou de parte mais ampla da mesma.

O futebol, a vitória, o poder, o domínio, as ideologias, as crenças são a representação das verdades com as quais nos defendemos da realidade. E nos defendemos, porque não aprendemos o grau maravilhoso de criatividade, adesão ao novo, deslumbramento pelo acaso, agradecendo à razão por nos permitir lidar com ela, o que é difícil e muito raro.

No delírio ou na decepção de um torneio que é mundial, todos os países e seu povo entram com as suas verdades e saem com a sua realidade.

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