Ernestina, desde pequena, foi ajuizada e séria. Cresceu sem as solturas
e prazeres exagerados da juventude. Era alegre e é bonita. Deixou os
cabelos embranquecerem naturalmente, desde os 45 anos. A pele perfeita, os olhos
pretos de jabuticaba, o cabelo branco no rosto jovem. É a representação
visual da honradez em forma humana. Católica por convicção,
desde cedo. Acreditava que o seu Cristianismo devesse ser radical (de raízes),
na linha dos cristãos primitivos. Isso a levou à política
nos anos da ditadura e, na democratização, acreditou profundamente
num dos partidos políticos nascidos da luta anos de chumbo. Fascinante
era a sua mistura de fé verdadeira e não carola, idealismo, consciência
das injustiças sociais e disposição para enfrentar a dura
realidade do conservadorismo brasileiro.
Atira-se à luta política, sem descuidar de sua casa. Bem casada,
um lindo casal de filhos. Ótima figura de mãe. Rogério,
o marido, inteligente, bonito também, compreensivo e amoroso. Não
era conservador, mas discordava de sua escolha partidária. Nunca interferiu,
entretanto, nas decisões políticas dela, mãe primorosa,
educadora através do amor, esposa caída do céu. Noites,
dias, meses, anos, campanhas várias. Ernestina se prestava com prazer
aos mais humildes papéis de militante verdadeira, panfletava, abria passeatas,
virava noites, discutia com bravura e fortes argumentos. Jamais desejou candidaturas
por mais convidada fosse.
Quinta feira passada foi à casa do Paulo Alberto (seu companheiro de
geração), pessoa de quem chegou a andar distante e ter o tipo
de raiva que se tem dos amigos, aquela sem desamor. Discordava por considerá-lo
conciliador em excesso, embora fosse ele seu melhor amigo, o das horas difíceis.
Dizia-lhe: "A você falta vinagre, Paulo. Falta vinagre à sua
ação política. E você me irrita com essa mania de
afirmar que a esquerda, no Brasil, só tem chance de avançar pelo
centro, jamais pela esquerda."
Paulo encontrou-a derreada, como jamais a viu. A mulher forte, honrada, idealista
desabara. Foi o dia seguinte ao da leitura do Parecer do Deputado Osmar Serraglio,
relator da CPI dos Correios. Atormentada ao fundo da alma e em choro compulsivo
disse ao amigo: "Deponho as armas. Tudo o que fiz, disse e discuti, foi
negar a realidade pelo menos até a metade da CPI. Agora não dá
mais para resistir. Meu mundo caiu (e lembrou a canção de Maysa).
Não consigo conviver com tanta patifaria. Nunca mais farei política.
Vou é tratar de ler, de amar ainda mais meu marido e os filhos! Chega!
Que terríveis são essas certezas! Estou exausta. Nem a fé
me trouxe forças".
Deprimiu-se de tal forma, que Paulo Alberto telefonou para o marido dela por
sentir que uma reversão de expectativa de anos de idealismo destroçava
a vida interior de uma pessoa decente e limpa de alma. Poderia até adoecer
de depressão. Com a chegada do marido, já um tanto aplacada, mas
um trapo de dor e decepção voltou para casa, amparada por ele.
Em seu ouvido, perdurava, obsessiva, uma das frases do Paulo Alberto: "
Ernestina: agüentei calado por anos a sua decepção com meu
modo de ser, porém agora preciso dizer-lhe a verdade: você ainda
não é um quadro político". Ela estranhou, reclamou.
Ele insistiu firme e sentencioso: "Alguém só se transforma
em político depois da decepção. Antes da decepção,
é tudo ilusão, idealismo, ética, religião, é
uma porção de coisas boas, porém ainda não é
política. Somente quem consegue prosseguir na ação política,
depois de se decepcionar, este sim, é o verdadeiro quadro político."
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