A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Chiclete de visgo de jaca

(Artur da Távola)

Meu neto arranca, com vigor, a folha de bico de papagaio, aquela árvore que, em julho, tem as folhas postas em vermelho, qual flor ou rubra estrela. A irmã menor, sem força, insiste para que eu a ajude a arrancar a outra, porque também quer ver o leitinho. Após falar-lhes que a planta sente dor, sento-me no degrau de uma escada diante da soleira e, enquanto eles somem atrás de leitinhos e bichinhos, fico a pensar na alegria e surpresa dessas descobertas da infância.

Na minha meninice, a garotada adorava tocar naquela minhoquinha que se enroscava em si mesma para se proteger, até se transformar em um círculo, que a meninada chamava de "bolinha".

Impossível esquecer a delícia que era (e ainda é) pisar nas bolinhas - não as citadas acima - mas as de fícus, e senti-las, crocantes, a estalar debaixo dos pés. E o gosto de tocar naquela planta de nome romântico, a sensitiva, para vê-la fechar-se, cheia de pudicícia?

Deliciosa era a sensação de pisar descalço na grama orvalhada e fria, de manhã, bem cedinho. Meu pai dizia que curava resfriado. Um dia, lemos no Monteiro Lobato que aquela turma do Pedrinho e da Narizinho disputava, com canivete bem afiado, para ver quem conseguia descascar a laranja sem ultrapassar a película branca que envolve os gomos. Desajeitado, somente uma vez consegui ganhar da molecada. Mas naquele tempo havia laranjas. E que laranjas as "seletas", "da Bahia", "lima". Hoje só há laranja-pêra; colhida verde, ácida às pampas, para fazer suco e mal ao fígado...

E fazer chiclete de visgo de jaca? Para a meninada, de pobre a remediada, sem tostão fácil para a goma de mascar, o visgo da jaca, juntado com a ponta do canivete em forma de bola, era a suprema das delícias. Mas havia jacas..

Por falar em visgo, substância que desapareceu da infância moderna, quem se lembra do abiu? De vez em quando pergunto:

"-Já comeu abiu?"

"-Abiu? - respondem - quiéisso?"

Sim, sim, o abiu da infância, que tinha visgo também, era fruta caprichosa. Bastava não estar completamente maduro, que dava tremenda cica. Era o que hoje se chama adstringente. Mas, quando completamente maduro, ficava sem a cica e era, ah, a delícia pegajosa, branca e doce do abiu a prelibar os melhores beijos de nossa vida...

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