A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Afetiva, sensual ou fiel?

(Artur da Távola)

O que torna difícil e enigmática a relação amorosa é o fato de se sustentar em três pilares que, se não são opostos, também não são equilibrados nem harmônicos. Diferentemente dos poderes da República, que devem ser independentes e harmoniosos entre si, no amor, e, principalmente, na paixão, eles são dependentes e desarmoniosos entre si: refiro-me ao tripé indispensável, mas eternamente instável: afetividade, sensualidade e segurança. É tema para um livro e muitos estudos, pois esses elementos vivem entrelaçados como os cipós de florestas fechadas.

· SEGURANçA: não há lei que mande um marido ou uma esposa serem afetivos, carinhosos, atentos, mas os códigos já puniram, e ainda punem, em determinadas culturas, um nível de sensualidade que, constantemente, conduz à sedução, à exacerbação dos sentidos e até ao chamado adultério. Um mistério profundo este que leva o homem e a mulher em estado de amor a garantir-se segurança através da imposição de lealdade e fidelidade ao parceiro/a. E veja: por mais evoluída que a pessoa seja ou queira ser, raramente neutralizará sua necessidade deste tipo de segurança. É que, emocionalmente, a segurança na relação não pode ser desprezada. Jamais vi a tal da "relação aberta" dar certo (ou ter continuidade). Dura um pouco e logo se dissolve. A segurança, tida em si como indispensável, é poderosa e castradora, até porque capaz de sustentar uma relação rotineira e fora do prazer.

· AFETIVIDADE: esta inclui a afinidade, o sentimento dominante, condição fundamental do relacionamento amoroso. A afetividade está sempre presente no lado mais carente de todos nós: o lado carência, infância, dependência, necessitado de afeto e compreensão. É variada e deslumbrante em seus disfarces. Ora é carinho, ora é paciência e atenção, ora é capacidade de calar discordâncias, ora é fingir que não vê. É o elemento que melhor se dá com os outros dois. Mas, sem a segurança, torna-se inócua, e, sem a sensualidade, se torna tênue, embora possa operar prodígios de resistência em uniões nas quais sensualidade e segurança estão ameaçadas. Afeto é cimento. Está mais perto da alma que do corpo.

· SENSUALIDADE: é inimiga da segurança e auto-eximida de afetividade, embora só funcione a favor da relação amorosa, quando entrosada com as mesmas. Contraditória, pois. Mas é assim. É o pólo subversivo, talvez terrorista, e o que mais ameaça as relações estáveis (ou ditas estáveis). É assim desalmada, mas é indispensável na relação. Daí a sua contundente contradição. Ela é, por definição, inquieta, exigente, inesgotável, resiste com dificuldade a cansaços e desencantos. No caso de não se dirigir apenas ao objeto amado, exige variedade, cede a vaidades, é carente e aceita qualquer estímulo novo. É um dos elementos complexos e misteriosos da relação amorosa, principalmente porque levou milênios disfarçando-se para poder sobreviver em sociedades que a condenaram, condenam e temem exatamente por seu caráter desintegrador e, paradoxalmente, pela forte e insuperável e enorme dose de prazer que assegura.

Que pena, o espaço acabou.

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