A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Aos pontapés

(Artur da Távola)

Francisco Queluz era professor do idioma pátrio, não dos mais brilhantes, porém se expressava bem. Pelo menos. E era da velha guarda, nada de petista descabelado a dar aula de sandálias com as unhas dos pés escurecidas e os dedos encardidos, Nem era caretão.

Algo o desafiava havia anos e cria só acontecer com ele. Havia manhãs em que despertava radioso. Abria as janelas com prazer, respirava fundo, fazia umas flexões, agradecia a deus três vezes, Obrigado, Obrigado, Obrigado ( era adepto da Seicho-No Ie). Era, inteiro, alegria, vontade de trabalhar inspiração para ensinar, gosto por servir. No caminho para a escola observava minúcias especialíssimas, mesmo na cidade grande, sabia de cor onde estava as árvores mais bonitas, percebia cada floração anual das buganvílias, dos flamboaiãs, das espirradeiras e via até passarinhos em algumas passagens. Ah que bem estar!

Noutros dias, misteriosamente, não se acordava com idênticas alegrias e energias por viver, por se considerar filho amado de Deus. Não era depressão nem nada grave. Era um não bem estar. Algo se-lhe ficava pesado, as costas doíam e sentia a vida meio sem graça e seu trabalho sem valor. Recitava para si mesmo a Sutra Sagrada da Seicho-no-ie, interessantíssima. Vinha-lhe o consolo mas jamais a energia dos dias brilhantes em que o prazer de estar vivo nos impulsiona na direção de uma efetiva gratidão ao Mistério, por tudo de bom que nos cerca e não vemos.

Sabia não ter o chamado distúrbio bi-polar, nem qualquer grave patologia (já consultara um psiquiatra), pois isso tudo se processava num plano leve, suportável e estava longe da depressão. Poderia ser, no máximo a infiltração de um leve e passageiro estado depressivo. Tinha certeza de que uns dias mais e voltaria ao júbilo de estar vivo. E assim acontecia.

Meticuloso, porém, e a perceber que com a idade as contraditórias sensações aumentavam, resolveu ir a um clínico que sabia sério e competente. O doutor ouviu-o, examinou detalhadamente, fez perguntas e a tudo encerrou com a frase redentora:

"Tudo ótimo, Ao ser assim o senhor é apenas uma raridade: uma pessoa normal. Essa labilidade emotiva é normal e suas causas são longínquas na história genética e na história da humanidade. E agora levante-se, arranque-se daqui, não precisa pagar a consulta, que eu também sou assim e hoje acordei de ovo virado e sem paciência para aturar hipocondríacos. Fora daqui antes que eu me aborreça e o expulse aos pontapés. Somos iguaizinhos. Nossa intensidade é que varia, professor. Cai fora."

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