Francisco Queluz era professor do idioma pátrio, não dos mais
brilhantes, porém se expressava bem. Pelo menos. E era da velha guarda,
nada de petista descabelado a dar aula de sandálias com as unhas dos
pés escurecidas e os dedos encardidos, Nem era caretão.
Algo o desafiava havia anos e cria só acontecer com ele. Havia manhãs
em que despertava radioso. Abria as janelas com prazer, respirava fundo, fazia
umas flexões, agradecia a deus três vezes, Obrigado, Obrigado,
Obrigado ( era adepto da Seicho-No Ie). Era, inteiro, alegria, vontade de trabalhar
inspiração para ensinar, gosto por servir. No caminho para a escola
observava minúcias especialíssimas, mesmo na cidade grande, sabia
de cor onde estava as árvores mais bonitas, percebia cada floração
anual das buganvílias, dos flamboaiãs, das espirradeiras e via
até passarinhos em algumas passagens. Ah que bem estar!
Noutros dias, misteriosamente, não se acordava com idênticas alegrias
e energias por viver, por se considerar filho amado de Deus. Não era
depressão nem nada grave. Era um não bem estar. Algo se-lhe ficava
pesado, as costas doíam e sentia a vida meio sem graça e seu trabalho
sem valor. Recitava para si mesmo a Sutra Sagrada da Seicho-no-ie, interessantíssima.
Vinha-lhe o consolo mas jamais a energia dos dias brilhantes em que o prazer
de estar vivo nos impulsiona na direção de uma efetiva gratidão
ao Mistério, por tudo de bom que nos cerca e não vemos.
Sabia não ter o chamado distúrbio bi-polar, nem qualquer grave
patologia (já consultara um psiquiatra), pois isso tudo se processava
num plano leve, suportável e estava longe da depressão. Poderia
ser, no máximo a infiltração de um leve e passageiro estado
depressivo. Tinha certeza de que uns dias mais e voltaria ao júbilo de
estar vivo. E assim acontecia.
Meticuloso, porém, e a perceber que com a idade as contraditórias
sensações aumentavam, resolveu ir a um clínico que sabia
sério e competente. O doutor ouviu-o, examinou detalhadamente, fez perguntas
e a tudo encerrou com a frase redentora:
"Tudo ótimo, Ao ser assim o senhor é apenas uma raridade:
uma pessoa normal. Essa labilidade emotiva é normal e suas causas são
longínquas na história genética e na história da
humanidade. E agora levante-se, arranque-se daqui, não precisa pagar
a consulta, que eu também sou assim e hoje acordei de ovo virado e sem
paciência para aturar hipocondríacos. Fora daqui antes que eu me
aborreça e o expulse aos pontapés. Somos iguaizinhos. Nossa intensidade
é que varia, professor. Cai fora."
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