A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

A vida ensina

(Artur da Távola)

Se você pensa que sabe; que a vida lhe mostre o quanto não sabe.

Se você é muito simpático mas leva meia hora para concluir seu pensamento; que a vida lhe ensine que explica melhor o seu problema, ou conta melhor o seu caso, aquele que começa pelo fim.

Se você faz exames demais; que a vida lhe ensine que doença é como esposa ciumenta: se procurar demais acaba achando.

Se você pensa que os outros é que sempre são isso e aquilo; que a vida lhe ensine a olhar mais para você mesmo.

Coma cebolas, muitas cebolas. Fazem bem à saúde e muito ajudam contra chatos em close. Chato em close é aquele que fala com a cara em cima da sua. Você recua, ele avança. Dá muito em coquetéis. Sua cara está sempre em close-up. Coma cebolas.

Se você pensa que viver é horizontal, unitário, definido, monobloco; que a vida lhe ensine a aceitar o conflito como condição lúcida da existência. Tanto mais lúcida quanto mais complexa. Tanto mais complexa quanto mais consciente. Tanto mais consciente quanto mais difícil. Tanto mais difícil quanto mais grandiosa.

Se você pensa que disponibilidade com paz não é felicidade; que a vida lhe ensine a aproveitar os raros momentos em que ela (a paz) surge.

Que a vida ensine a cada menino a seguir o cristal que leva dentro, sua bússola existencial não revelada, sua percepção não verbalizável das coisas, sua capacidade de prosseguir com o que lhe é peculiar e próprio, por mais que pareçam úteis e eficazes as coisas que a ele, no fundo, não soam como tais, embora façam aparente sentido e se apresentem tão sedutoras quanto enganosas.

Que a vida nos ensine, a todos, a nunca dizer as verdades na hora da raiva. Que desta aproveitemos apenas a forma direta e lúcida pela qual as verdades se nos revelam por seu intermédio; mas para dizê-las depois. Que a vida ensine que tão ou mais difícil do que ter razão, é saber tê-la.

Que aquele garoto que não come coma. Que aquele que mata não mate. Que aquela timidez do pobre passe. Que a moça esforçada se forme. Que o jovem jovie. Que o velho velhe. Que a moça moce. Que a luz luza. Que a paz paze. Que o som soe. Que a mãe manhe. Que o pai paie. Que o sol sole. Que o filho filhe. Que a árvore arvore. Que o ninho aninhe. Que o mar mare. Que a cor core. Que o abraço abrace. Que o perdão perdoe.

Que tudo vire verbo e verbe. Verde. Como a esperança. Como no princípio. Pois, do jeito

que o mundo vai, dá vontade de apagar e começar tudo de novo.

A vida é substantiva, nós é que somos adjetivos.

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente