A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Sonho de amor

(Artur da Távola)

São Paulo. Trânsito infernal. Mulher a ultrapassar a casa dos cinqüenta anos. Terapeuta de êxito, três casamentos bem realizados, filhos, netos e uma juventude nascida de um saber analisar-se e saber estar consigo mesma, transformando-a em tão jovem quanto seus filhos e bem próxima dos netos. Há alguns anos parou de reclamar do trânsito ou aborrecer-se com ele. A Rádio Cultura FM transformou em prazer musical o tempo ali passado parada ou a passo de cágado.

Lá num desses dias em que amanheceu mais emotiva, entra de repente no ar a famosa peça "Sonho de Amor", de Liszt, melodia belíssima do auge do romantismo musical à qual todo pianista que se preze precisa dar a sua interpretação. Com a velocidade da memória emotiva, vêm-lhe lembranças de sua casa: "por causa desta música, minha mãe, exímia pianista, abandonou o teclado! Curioso como tudo era a sério antigamente e quanto amor herdamos. Apaixonada por meu pai, executou sua peça favorita, o "Sonho de Amor" para agradar o amado...Oh, tragédia da ingenuidade masculina !...

O comentário de meu romântico pai foi: ' - Muito bonito, mas minha mãe interpreta melhor...' O céu desabou sobre minha jovem mãe, incapaz de competir com minha experiente avó paterna, outra excelsa pianista !"

E concluiu para si mesma: "e assim passou-se minha infância, em torno de um piano matriarcal e de mulheres apaixonadas, dando o melhor de si."

Aí se deu conta de que ela jamais faria o mesmo. A independência de seu tempo e os anos de terapeuta não a levariam a cortar uma carreira por tal motivo. Teria ido à luta. Mas acrescentou - uma vez mais - para si mesma e com a experiência de anos a ouvir e a curar pacientes, "pacientas" e impacientes: como é delicada e sutil a alma da mulher. Mesmo hoje, diariamente em seu consultório, constata como e quanto a mulher vive para amar e como é íntegro o amor de uma mulher. Ela vive do Sonho de Amor.

Estava nisso quando a buzina aguda, agressiva e insistente de um imbecil, no carro atrás, avisava-a, escandaloso, que o sinal já abrira havia dois segundos.

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