São Paulo. Trânsito infernal. Mulher a ultrapassar a casa dos cinqüenta
anos. Terapeuta de êxito, três casamentos bem realizados, filhos,
netos e uma juventude nascida de um saber analisar-se e saber estar consigo
mesma, transformando-a em tão jovem quanto seus filhos e bem próxima
dos netos. Há alguns anos parou de reclamar do trânsito ou aborrecer-se
com ele. A Rádio Cultura FM transformou em prazer musical o tempo ali
passado parada ou a passo de cágado.
Lá num desses dias em que amanheceu mais emotiva, entra de repente no
ar a famosa peça "Sonho de Amor", de Liszt, melodia belíssima
do auge do romantismo musical à qual todo pianista que se preze precisa
dar a sua interpretação. Com a velocidade da memória emotiva,
vêm-lhe lembranças de sua casa: "por causa desta música,
minha mãe, exímia pianista, abandonou o teclado! Curioso como
tudo era a sério antigamente e quanto amor herdamos. Apaixonada por meu
pai, executou sua peça favorita, o "Sonho de Amor" para agradar
o amado...Oh, tragédia da ingenuidade masculina !...
O comentário de meu romântico pai foi: ' - Muito bonito, mas minha
mãe interpreta melhor...' O céu desabou sobre minha jovem mãe,
incapaz de competir com minha experiente avó paterna, outra excelsa pianista
!"
E concluiu para si mesma: "e assim passou-se minha infância, em torno
de um piano matriarcal e de mulheres apaixonadas, dando o melhor de si."
Aí se deu conta de que ela jamais faria o mesmo. A independência
de seu tempo e os anos de terapeuta não a levariam a cortar uma carreira
por tal motivo. Teria ido à luta. Mas acrescentou - uma vez mais - para
si mesma e com a experiência de anos a ouvir e a curar pacientes, "pacientas"
e impacientes: como é delicada e sutil a alma da mulher. Mesmo hoje,
diariamente em seu consultório, constata como e quanto a mulher vive
para amar e como é íntegro o amor de uma mulher. Ela vive do Sonho
de Amor.
Estava nisso quando a buzina aguda, agressiva e insistente de um imbecil, no
carro atrás, avisava-a, escandaloso, que o sinal já abrira havia
dois segundos.
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