Meu amigo Aldrovando Perneira estava aborrecido e magoado. Haviam feito uma
baita intriga, pura maledicência, com a garota com quem estava de amassos
há uns três meses e já, cá entre nós, gamadão
por ela. Chorou pitangas comigo, que, por mais idoso, ele supõe ser mais
sábio. Eu tenho também muita raiva de maledicência e de
se abusar das ausências para ofender. Controlei o meu "você
tem toda a razão" e lhe disse:
"Acredite, Aldrovando, quem não o adivinha não o merece.
Disfarçada de lesma, a verdade anda muito rápido. Basta-nos o
merecer, ainda que, depois, o sincero testemunho de alguém que ajude
a desfazer a maledicência. Esta é filha da inveja, de disputa inconsciente
ou da maldade. Não é importante que nos elogiem. Ou que ataquem.
Importante é haver quem dê o testemunho da verdade. Ainda que sozinho
ou minoria, o injustiçado crescerá no conceito alheio."
"Como é que é?" - perguntou. "Que negócio
é esse de me adivinhar"?
"Abra a sua cabeça, meu amigo" - retruquei. "Sim, adivinhar.
Só gosta de nós quem, de alguma maneira, perceptiva, subconsciente,
adivinha como somos. Isso é um privilégio. Por isso, quem não
o adivinhar, se você reparar bem, não o merece. Ou não merece
o seu aborrecimento, isso por que, e é voz corrente, nem Jesus agradou
a todos. Esperar apenas apreço e consideração é
ser imaturo ou carente. Mas fazer por onde merecer um testemunho sincero em
seu favor, unzinho só que seja, já é obter a vitória
contra a ferrugem da alma do ou da maledicente."
Ele me olhou como se compreendesse, animei-me com a minha própria descoberta
feita naquele momento e, vaidoso, prossegui:
"O homem é animal restritivo. Algo, nele, fecha-se para o outro.
O outro é sempre mistério, desafio, procura e contradição.
Para Sartre, o inferno é o outro. Pessoalmente, não concordo com
ele, mas entendo o que quis dizer. Ele quis dizer que o ser humano é
o único animal que julga, seja corretamente, ou não. Há
que desistir de esperar a compreensão plena, bastar-se com uma aceitação
apenas parcial do que somos e alegrar-se quando alguma simpatia se estabelecer.
Simpatia jamais será regra, é exceção. O vitupério
morre com seu autor, em pouco tempo. Paciência, Aldrovando, paciência.
Os simpáticos profissionais são superficiais."
Olhei para ele, duas lágrimas rolavam. "Mas é que ela, irada,
já me deu o fora. E o pior é que o desgramado falou mal dela também.
Disse que me corneou."
Que tal comprar um livro de Artur da Távola? O Jugo das Palavras |