A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Ela não te merece

(Artur da Távola)

Meu amigo Aldrovando Perneira estava aborrecido e magoado. Haviam feito uma baita intriga, pura maledicência, com a garota com quem estava de amassos há uns três meses e já, cá entre nós, gamadão por ela. Chorou pitangas comigo, que, por mais idoso, ele supõe ser mais sábio. Eu tenho também muita raiva de maledicência e de se abusar das ausências para ofender. Controlei o meu "você tem toda a razão" e lhe disse:

"Acredite, Aldrovando, quem não o adivinha não o merece. Disfarçada de lesma, a verdade anda muito rápido. Basta-nos o merecer, ainda que, depois, o sincero testemunho de alguém que ajude a desfazer a maledicência. Esta é filha da inveja, de disputa inconsciente ou da maldade. Não é importante que nos elogiem. Ou que ataquem. Importante é haver quem dê o testemunho da verdade. Ainda que sozinho ou minoria, o injustiçado crescerá no conceito alheio."

"Como é que é?" - perguntou. "Que negócio é esse de me adivinhar"?

"Abra a sua cabeça, meu amigo" - retruquei. "Sim, adivinhar. Só gosta de nós quem, de alguma maneira, perceptiva, subconsciente, adivinha como somos. Isso é um privilégio. Por isso, quem não o adivinhar, se você reparar bem, não o merece. Ou não merece o seu aborrecimento, isso por que, e é voz corrente, nem Jesus agradou a todos. Esperar apenas apreço e consideração é ser imaturo ou carente. Mas fazer por onde merecer um testemunho sincero em seu favor, unzinho só que seja, já é obter a vitória contra a ferrugem da alma do ou da maledicente."

Ele me olhou como se compreendesse, animei-me com a minha própria descoberta feita naquele momento e, vaidoso, prossegui:

"O homem é animal restritivo. Algo, nele, fecha-se para o outro. O outro é sempre mistério, desafio, procura e contradição. Para Sartre, o inferno é o outro. Pessoalmente, não concordo com ele, mas entendo o que quis dizer. Ele quis dizer que o ser humano é o único animal que julga, seja corretamente, ou não. Há que desistir de esperar a compreensão plena, bastar-se com uma aceitação apenas parcial do que somos e alegrar-se quando alguma simpatia se estabelecer. Simpatia jamais será regra, é exceção. O vitupério morre com seu autor, em pouco tempo. Paciência, Aldrovando, paciência. Os simpáticos profissionais são superficiais."

Olhei para ele, duas lágrimas rolavam. "Mas é que ela, irada, já me deu o fora. E o pior é que o desgramado falou mal dela também. Disse que me corneou."

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