A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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A mulher carioca

(Artur da Távola)

A carioca está mais para fruta que flor. Ela é sumo, oferenda, cor e alegria. É flor, sim, transformada em dádiva, semente, procriação: o fruto. Não vive de sonho: sonha viver, ser, enfrentar, atravessar mares, baías, pontes, pontapés, bala perdida, montanhas, mistérios e mitologias na procura de seu amor. Ela mistura poesia, zen, psicanálise, Fernando Pessoa, Nelson Gonçalves, valsa de 15 anos, bolero ou sabor de jujuba em seu olhar ora triste ora tardio, nostalgia de cais, decisão de santa, vontade de javali, ânsias de torcedor do Flamengo naquele segundo que antecede o grito de GOL.

A carioca não rejeita tarefa. É de luta sem ser de briga. É de bondade sem ser de fraqueza. É de mar sem deixar de ser de serra. Ela não confunde compreensão com paquera; interesse com atração, amizade com infidelidade, amor verdadeiro com envolvimento. Gosta de coisas claras, manhã de vento frio no sol forte, carambola, dengo, elogio na orelhinha e franqueza. Ela toma água de coco, come polpa de margarida e tem pitangas no olhar. Sabe de guerra de almofadas, riso solto, vontade de brincar e competência profissional.

A carioca da gema não gosta de vaidosos, odeia os pesados d'alma mas se afasta dos levianos. Para conquistá-la há que já ter lutado pela justiça, ter perdido certas batalhas e saber sair melhor de cada derrota conseguida em nome dos melhores ideais. Mas em nome dos ideais não há que ser chato; juiz dos demais, metido a puro, ou patrulheiro ideológico, que nada disso ela aprecia. Prefere o ar livre ao refrigerado; os bons aos simpáticos; os intensos aos tensos; os generosos aos amáveis; os de sorriso bom à vaidade exibicionista; os francos aos grossos.

A carioca ama vestidos soltos, e sentir suas sublimes pernas livres e belas, o busto em expansão. Prefere as almas tolerantes aos puros restritivos. Gosta de pai amoroso, avião, refresco de caju, passear de mãos dadas e dizer "médio" bem chiadinho, "médjjioo". Sabe de crianças, não invade o próximo e detesta fuxicos, cutucões, beliscos, gente que fala alto, bafo de tigre, interesseiros. Prefere o encontro das verdades: das químicas do corpo, às verdades existenciais e as do amor, ainda que doam.

A carioca tem cheiro de férias e cor de amendoeira ao pôr do sol no Posto Seis em Copacabana. Está sempre com cara de quem quer se lambuzar num sorvete de chocolate que ela pronuncia chocolate, assim como fala "doce" em vez de doze, de som tão seco. Finge não dar bola para o muito do amor que lhe vive a estourar sem estorvar, no peito amigo e bom, onde mora a mais completa vontade de ser, crescer e existir. Quando sorri, exibe sua alegria de quermesse e algodão de açúcar, nascida do amar sem grilos, apenas deixando-se sentir, fluindo, fluindo, até chegar ao melhor de si, sempre guardado apenas para um felizardo.

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