A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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A poesia percutida das baterias

(Artur da Távola)

Faz uns dias, vi na televisão uma breve reportagem de noticiário, que por certo passou despercebida. Era um maestro, desses com Escola de Música, Doutorado etc. em contato com membros da bateria da Mangueira, a aplicar seus estudos técnicos sobre ritmo e, assim, reinventar artifícios e novidades de natureza técnica e completa.

Essa aula era acompanhada com a maior atenção pelos ritmistas presentes. Possivelmente no próximo carnaval, a Mangueira aparecerá com novidades digamos musicalmente científicas no dia do grande desfile. Tudo dando certo vai ser uma nova e surpreendente atração de uma bateria que, juntamente com a mais popular das escolas de samba, inevitavelmente levanta o povão da arquibancada.

Fiquei a pensar no mistério das baterias das escolas de samba. Nelas implodem os deuses escondidos das raças oprimidas, a força que mora guardada no povo brasileiro à espera do dia em que o País seja de quem o faz e não de quem o aproveita. Hoje percutem de modo admirável milhares de mãos pobres batendo na miséria e na injustiça, não com golpes de destruição, mas com a percussão da harmonia. É a vibração maior da alegria de criar em conjunto sem, por isso, anular-se cada indivíduo. Nelas, o coração do samba bate o compasso da marcha do povo para um futuro de igualdade e justiça. Com liberdade, é claro.

Ora é o tamborim que se alvoroça no nervosismo da busca. Ou o tarol que se mostra tinhoso e exato, apontando os caminhos. E bumbam os surdos, lembram que tudo no cosmos possui uma pulsação misteriosa. Todos os contrastes cessam e se harmonizam ao ritmo exemplar da bateria de escola de samba. Ela recorda o pé descalço, a boca sem dentes, o cabelo por pentear ou super penteado, na beleza transfigurada do povo do Brasil. É o sonho ritmado da vida que um dia há de construir um reino de liberdade, apesar do lamento doloroso das cuícas. O apego nosso pelo ritmo representa o coração da mãe desde que somos feto: uma batida e uma síncope. Uma pulsação e uma parada. Analogia com a vida. O que pulsa é vivo e o que é síncope lembra o silêncio da morte. Tudo em frações de segundos. O ritmo interrompe a parada (síncope). Vida e morte pulsando, eternamente se contrapondo. O importante é pulsar. Neste momento, lembro-me da famosa paradinha do falecido e nunca esquecido mestre André. Da paradinha, mergulho na morte - salta a vida no repenico dos tamborins.

Salve a bateria das escolas de samba. O povo a criou e, agora, maestros eruditos decompõem seus compassos e a estudam a fundo para aperfeiçoar ainda mais o que nasceu e cresceu lindo, límpido, criativo, como só este mesmo povo sabe ser.

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