Peço licença para falar na minha criança, a que mora aqui
dentro e não me abandonará jamais. Talvez com a morte eu até
regresse a ela. Os sessenta anos que dela me separam não a removem. Ela
ali está, magra e tímida a me olhar e ditar comportamentos e reações.
Minha criança esteve em todos os meus filhos e aparece no meu neto Davi.
Ela se refaz da morte da irmã e abre os olhos para o mundo com a certeza
de que veio ao mundo para alguma missão embora sempre se considere inferior
ao tamanho da mesma. Minha criança sente enorme saudade de pai e da mãe
com quem o adulto já não conta salvo no exemplo, na saudade e
numa ou outra fugidia sensação de estarem, incorpóreos,
a seu lado mas sem se manifestarem.
Minha criança possui incomensuráveis solidões diante do
mistério do infinito. Ainda recua diante do violento embora não
o tema e ainda se infiltra em episódios de distração e
inocência inexplicáveis num homem com minha carga de vivências.Minha
criança ainda gosta de abraço caloroso, proteções
misteriosas e de um modo de rezar que o adulto nunca mais conseguiu tais a entrega
e a total confiança no Mistério e na proteção de
Deus.
Minha criança carrega o melhor de mim, é portadora de meu modo
triste de falar de coisas alegres e de algum susto misterioso sempre que se
impõe alguma expectativa. Minha criança é inteira, mansa,
bondosa e linda.
Eu a amo, preservo, e dou boas gargalhadas quando a vejo infiltrar-se nas graves
decisões de algumas de minhas responsabilidades adultas. Ninguém
a vê salvo eu. Ninguém a acaricia salvo eu, que a estimo, procuro
e admiro mais a cada dia e com quem converso histórias infinitas que
somente a imaginação pode conceber no universo maravilhoso da
fabulação.
Diariamente passeio com minha criança e estou muito feliz por cumprimentá-la,
levar-lhe balas, nuvens, aquele cão da meninice, as canções
de minha mãe e os carinhos de meu pai, levar-lhe os presentes que ganhava
de meu padrinho e toda a enorme vontade de Ser que então adivinhava para
a minha vida. Vida que chegou, ameaça passar, e da qual não me
arrependo. Minha criança adivinhou em seus sonhos o adulto que eu queria
ser.
Talvez com menos tensões mas igualzinho em meu modo de amar a vida.
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