A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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A gente gosta do que já gostava

(Artur da Távola)

Acompanhando com tristeza interior a morte de dois grandes cineastas que marcaram minha vida, Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, ocorrida semana passada, desandei a pensar sobre o papel de um grande artista na vida dos demais.

O artista é um terapeuta coletivo que no seu rude e doce ofício caracteriza, dá forma e fundo aos principais traços das enfermidades da alma humana, as emoções, delírios e outros mecanismos psicológicos.

Desde a antiga tragédia grega, uma das funções da arte é provocar a catarse, isto é, a purgação dos males através de sua materialização em personagens ou obras que os tornem claros, eximindo o espectador de ver tais males em si mesmo, mas provocando, através deles (personagens e obras), a drenagem necessária ao alívio das tensões internas causadas pelo conflitos inerentes ao viver e ao relacionar-se.

Um ator, por exemplo, não se aprecia integralmente apenas quando a gente recebe o impulso que dele se originou , mas principalmente quando, após constatada a afinidade com ele e seu modo de atuar, surge um impulso nosso na direção de compreender a sua arte em profundidade.O mesmo com o escritor, o poeta, o pintor etc.

Uma obra não se esgota no movimento do autor para o receptor. Ela começa a se fazer efetiva e a caracterizar a sua verdadeira dimensão estética quando surgem os movimentos do receptor para o autor. Dá-se então uma nova criação que vai além do pretendido pelo autor. Não há autoria sem recepção que se lhe equipare ou supere.

Para se compreender um artista não é necessário apenas conhecer-lhe a vida e estudar-lhe as obras. Impõe-se sentir em profundidade o que lhe tocar a sensibilidade. Não há compreensão de um poeta,músico, pintor ou ator sem afinidade profunda com o seu modo de sentir, espécie de adivinhação posterior de seus mecanismos de adaptação ao impacto de viver.

O processo de afinidade com o modo de criar a obra de arte provém de algo misterioso que sai da alma do artista mas que já morava na alma do receptor de sua mensagem, em estado latente ou patente. A afinidade é um sentimento que independe de regras conscientes e é alheio ao tempo. Une pessoas afins sem necessidade de convivência ou concordâncias. A obra de arte não é um mecanismo plenamente controlado. Vai além do ator, prolonga-se no público. E esta é a tarefa do artista: ultrapassar o momento e perdurar no espectador. Para modificá-lo enquanto é modificado por ele. A obra de arte jaz, desconhecida, dentro de quem a aprecia. Essa descoberta é fundamental.

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