Acompanhando com tristeza interior a morte de dois grandes cineastas que marcaram
minha vida, Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, ocorrida semana passada,
desandei a pensar sobre o papel de um grande artista na vida dos demais.
O artista é um terapeuta coletivo que no seu rude e doce ofício
caracteriza, dá forma e fundo aos principais traços das enfermidades
da alma humana, as emoções, delírios e outros mecanismos
psicológicos.
Desde a antiga tragédia grega, uma das funções da arte
é provocar a catarse, isto é, a purgação dos males
através de sua materialização em personagens ou obras que
os tornem claros, eximindo o espectador de ver tais males em si mesmo, mas provocando,
através deles (personagens e obras), a drenagem necessária ao
alívio das tensões internas causadas pelo conflitos inerentes
ao viver e ao relacionar-se.
Um ator, por exemplo, não se aprecia integralmente apenas quando a gente
recebe o impulso que dele se originou , mas principalmente quando, após
constatada a afinidade com ele e seu modo de atuar, surge um impulso nosso na
direção de compreender a sua arte em profundidade.O mesmo com
o escritor, o poeta, o pintor etc.
Uma obra não se esgota no movimento do autor para o receptor. Ela começa
a se fazer efetiva e a caracterizar a sua verdadeira dimensão estética
quando surgem os movimentos do receptor para o autor. Dá-se então
uma nova criação que vai além do pretendido pelo autor.
Não há autoria sem recepção que se lhe equipare
ou supere.
Para se compreender um artista não é necessário apenas
conhecer-lhe a vida e estudar-lhe as obras. Impõe-se sentir em profundidade
o que lhe tocar a sensibilidade. Não há compreensão de
um poeta,músico, pintor ou ator sem afinidade profunda com o seu modo
de sentir, espécie de adivinhação posterior de seus mecanismos
de adaptação ao impacto de viver.
O processo de afinidade com o modo de criar a obra de arte provém de
algo misterioso que sai da alma do artista mas que já morava na alma
do receptor de sua mensagem, em estado latente ou patente. A afinidade é
um sentimento que independe de regras conscientes e é alheio ao tempo.
Une pessoas afins sem necessidade de convivência ou concordâncias.
A obra de arte não é um mecanismo plenamente controlado. Vai além
do ator, prolonga-se no público. E esta é a tarefa do artista:
ultrapassar o momento e perdurar no espectador. Para modificá-lo enquanto
é modificado por ele. A obra de arte jaz, desconhecida, dentro de quem
a aprecia. Essa descoberta é fundamental.
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