Choramos e pedimos por vós, praias da Ilha do Governador, outrora belas
como a manhã e simples como as flores. Choramos por vossa agonia e as
entidades que a dominam, obsessivas, o cádmio, o mercúrio, o coliforme
fecal, o nitrogênio.
Adeus Galeão, onde a brisa contava segredos de namoradas fugias, mas
saudosas depois; adeus São Bento (seria São Vento?) onde as areias
cochichavam Deus e as águas batizavam. Adeus Bica, de tanta algazarra,
concurso de respiração debaixo d'agua, virgens em férias
despertando amores e promessas. Adeus Dendê, Rosas, Pitangueiras, onde
estão vossas palmeiras, roseiras e pitangas, soprando femininas ao vento
da tarde e madurando frutos e flores no coração de Lúcias,
Letícia e Leonores. Por onde andam as belas morenas da Engenhoca, as
Fernandas e Marisas do Engenho Velho e como escutar o riso infantil, antes alegria
sem medo, nas Praias da bandeira, da Olaria ou da Ribeira? Ri... beira. Na beira
ninguém mais ri: fecha a boca, o nariz, a pele, o gosto, o cheiro, a
contaminação..
Oramos por vós, praias da Ilha. Pedimos por vossa salvação
num tempo e modo de vida que não façam da indústria e do
progresso material as únicas e totalitárias medidas e modos de
viver.
Os demônios venceram. O capeta chumbo, infiltrando nas vísceras
de vossos filhos peixes. Bocarras imensas de esgotos diabólicos vomitam
fezes em vossos domínios. Praias da Ilha. São cloacas abissais,
fantasmagóricas, dejetos de milhões que comeram salsichas, carne
de porco, margarinas, gorduras torpes, leite enfermo, frango com anabolizante,
queijos vencidos, frutas podres ou verdes, arroz industrializado, sal industrializado,
maça com cera na casca, melancia com colorante, carne com hormônios,
pão doce com ovo artificial de corantes amarelas, tóxicos.
Oramos por vós, praias da Ilha, que fostes luz e ar, ora sois óleo,
lama, lata, bacilo, bactéria, cocô de cão, copo plástico,
garrafa, dejeto do Rio Suruí, do Canal do Mangue, do Rio Sapuruí,
do Iguaçu, do Estrela que já não brilha, estrela n'agua
entre urinas, fezes, colchões velhos, cascas de abóbora, feijão
azedo, rato morto, barata e cuspidelas de tanta boca enferma.
Choramos por vós, praias da Ilha, onde repousam também os restos
das refinarias, ataúde de faunas marinhas, cemitérios de cavalos
marinhos, pescadas, tainhas e camarões. Peixes galos cancerosos vagueiam
por vossas águas chorando. Robalos leucêmicos entoam hinos ao criador
pedindo clemência para seus fígados afetados de mercúrio
e cobre. Há um coral de dores e clamores no silencioso fundo de vossas
águas. Clamam pelo fim da hecatombe e da guerra atômica que para
eles já começou.
Na superfície, o som do fundo do mar encontra o coro de vossas crianças
em prantos sem sol e saúde, ameaçadas em seu futuro por um tipo
de vida (morte?) na qual o não, o cuidado, o medo são as regras,
onde nada é respeitado salvo o que signifique lucros cada vez mais para
menos.
Oramos por vós, praias da Ilha, por vossas palmeiras e coqueiros mortos
e vossas orlas invadidas por carros, motos, descargas brutais de som explodido,
fumaças, assaltos, agravos e por vossas águas mortas ou enfermas.
Um dia o homem sonhou encontrar-vos como espaço de luz e paz, instância
milagrosa. Hoje contempla a ruína do seu sonho.
Oramos por vós, praias da Ilha. Descansai em paz. Que Deus tenha piedade
de vós e de vossos cruéis predadores não os matando de
náusea, tédio ou diarréia .Deus não mata, mas castiga.
E castigará a todos os que poluem as belíssimas e machucadas praias
da Ilha do Governador de todas as orlas do Paraíso chamado Rio de Janeiro.
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