A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O pão deles de cada dia

(Artur da Távola)

Sempre que é domingo recordo os tempos da infância, quando a mãe pedia que eu fosse comprar o pão cedinho. Era um amanhecer ameno e calmo, pouca gente e carros na rua.

Antigamente o pão era saboroso. São famosas certas padarias e confeitarias das décadas de 30 e 40. Era um comércio de classe e respeito. A ambição não era tão fundamental para viver. As padarias disputavam, então, as preferências, para as quais contribuíam deliciosos doces. Lembro dos "sonhos", aquela bola açucarada, deixando escorrer aquela parte amarelada, suave secreção gemada de sua delícia. Anos depois, jovem boêmio, eu sentia o cheiro do pão no ar ao voltar para casa ao amanhecer. Eram as padarias, que acordam cedo na madrugada a preparar o pão na fase do forno. Ameno odor. Quem não sentiu cheiro de pão no ar da madrugada, bom boêmio não foi...

Tudo isso acabou, conseqüência da produção em série e da desnecessidade de agradar à freguesia, porque hoje mora tanta gente no local que, tratando bem ou nada fazendo, todo mundo compra igual.

Lembro-me neste momento do tempo da guerra. Eu era criança. Faltava trigo e as padarias, durante algum tempo, fizeram o pão de milho. Posso garantir: no começo se estranhava e depois se descobria o sabor maravilhoso do pão de milho. Quentinho, era delícia! A manteiga a derreter-se, dengosa.

As padarias caíram muito de qualidade. Salvam-se, isto sim, comércios inteligentes especializados em pão. Já uma padaria estilo tradicional hoje em dia não vive só do pão francês. Ganha - e muito - com vários outros produtos, nos quais desconta fartamente a margem de lucro que não tira do chamado pão francês. Alguns padeiros embromam (e bromam, porque carregam no bromato) e mentem quando entregam um pão infame e dizem fazê-lo por causa do preço da farinha e do prejuízo.

Antigamente as padarias tinham orgulho de seus produtos. Muitas delas, depois, transformaram-se em ótimas fábricas de bolos, tortas, pães e massas, vendendo os seus produtos para toda a cidade. Hoje, as padarias são mais lanchonetes que fabricantes especializadas de pães e confeitos.

Ah, tempos de decadência! Saudades de um Rio melhor, no qual comprar pão era trazer o alimento verdadeiro e bíblico: trigo, ovo, fermentos, e não a massa indigesta, feita e insípida que nos impingem e vira goma no bucho da gente.

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