A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Natal e mais Natais

(Artur da Távola)

Se dependesse de mim haver, ou não, o Natal, haveria. E, com festa. Mas, para todos, de todas as classes sociais. Natal do médico que vai para casa cheio de gratidões embrulhadas. Natal do motivo dessas gratidões. Natal dos ingratos e dos que não merecem gratidão. Natal de quem precisa da gratidão alheia para suportar a própria bondade, aparente. Natal de quem fracassou e não admite. Natal de quem nada espera. Natal dos tolerantes, porque tiveram infância protegida e presenteada. Natal dos que o temem, por saudade de parentes queridos, distantes ou mortos, sempre lembrados melhores, mais belos e mais bondosos, nesse dia, mesmo que já o fossem. Natal de quem visita e alegra os asilos de velhos, loucos e crianças enfermas. Natal de todas as ilusões, porque, um belo dia, a gente descobre que as pessoas gostam mesmo é da ilusão; e, aí, fica tudo bem, porque, menos exigentes, aceitamos, agora, que a realidade é tão rica na sua infinita mutação, que o homem precisa da ilusão para suportar tanto a lucidez quanto o completo desconhecimento das coisas. A ilusão é o primo pobre do mistério, e o Natal é a Sagração do Mistério benfazejo feito vida para salvar o Natal dos monges em silêncio. Natal das abadias e das capelas desertas. Natal do canto gregoriano do Advento. Natal das profecias. Natal do filho novo. Natal da primeira gravidez da mulher feliz, a que casou por amor. Natal da mãe bem recebida. E do filho que deu orgulho. Natal do irmão que acabou fazendo as pazes e perdoando. Natal do homem que conseguiu o que queria. Natal da moça que passou na prova e se fez professora, para orgulho do pai motorista. Natal do careta e do careca e do feio sem ressentimentos. Natal do supimpa. Natal dos generosos. Natal do detestado. Natal do perseguido. Natal do bem sucedido. Natal do boboca. Natal do carola. Natal do ingênuo. Natal da cantora sem platéia e do maestro sem orquestra. Natal da filha que se perdeu e da filha que se achou. Natal na delegacia, de mesa engordurada pela marmita e pelo plantão. Natal da enfermaria dos indigentes. Natal da freira enfermeira a consolar o agonizante. Natal da babá que veio do nordeste com 17 anos e é o primeiro que passa longe dos pais. Natal de quem está recompondo os seus cacos existenciais e sente que está crescendo. Natal que é renovar e renascer. Renascer é revelar. Revelar Cristo é reviver. Cristo revelou a Vida.

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente