Marquinho alegre e excitado, saltava de emoção enquanto sua pipa
com cerol na linha, disputava com outra, vinda de um terreno baldio distante.
Puxa daqui, leva para o lado, dá linha, tira. Ele era o melhor levantador
de pipa do local. O imemorial sentido da luta e da disputa no ser humano atuava
dentro dele, um garoto de bom coração. Nisso, um belo pássaro
negro com marcas azuis no vôo veloz esbarra na linha de sua pandorga e
em seguida cai, vertiginoso, quase na vertical. Por coincidência vem se
esborrachar no jardim da casa do Seu Jonir Moraes, uma pessoa bondosa que deixava
a garotada brincar e facilitava as coisas. Recolhe a pipa já sem o gosto
da disputa com outros garotos e diz para si mesmo ser a segunda vez que isso
acontece. Na primeira não falou para ninguém e não achou
onde caiu o urubu dilacerado pelo cerol.
Marquinho adorava bicho, fosse urubu, minhoca ou colibri. Com três amigos
correu até o portão de seu Jonir, tocou a campainha e pediu para
pegar um passarinho que estava caído no jardim. Seu Jonir abriu e suavemente
como era de seu estilo, censurou-o: "Logo você, Marquinho, um menino
tão bom, alvejando passarinho?" "Não seu Jonir,..."
e contou o acontecido.
A ave, cortada pelo cerol, sangrava, arfava, entregue àquelas mãos
gigantes (para ela) que buscaram água oxigenada e tentaram estancar a
sangueira. Marquinho, a ponto de chorar, não sabia o que fazer. A sorte
foi passar por ali um jornalista do bairro, João Carlos Pedroso, que
sendo uma pessoa bem informada, disse que aquilo era comum nas férias
quando a criançada solta muita pipa com cerol. E indicou-lhes o caminho:
"Corram para o Ibama!"
"O Ibama? Lá não é veterinário", disse
seu Jonir, já solidário com a ave e as crianças mas sabia
que o jornalista, também vizinho, era homem de respeito. Disse Pedroso:
"Liguem pro Ibama e perguntem onde é o CETAS que é o Centro
de Triagem de Animais Silvestres. Lá eles recebem pássaros cortados
pelo cerol: até corujas, urubu e gavião carcará, são
mutilados pelo cerol. Alguns morrem na hora. Lá no jornal já fizemos
uma reportagem sobre isso".
Quando chegaram ao Cetas do Ibama, o pássaro parecia estar em agonia.
Um senhor Vilela, muito amável disse-lhes para deixar a ave lá
que fariam o possível. Dia seguinte, Marquinho não agüentou
a aflição e culpa, pediu à mãe para levá-lo
lá. Ela podia. Ali ele soube que "somente dez por cento das aves
cortadas pelo cerol das linhas de pipa, são levadas para o Ibama. As
outras, quando não morrem ficam pelo chão para sempre, por impossibilidade
de voar. Acabam sendo comidas por algum predador. O drama das aves tratadas
no Ibama é que algumas levam tempo para se curar e engordam demais, perdendo
assim condições para o seu habitat natural".
"E aí?, perguntou Marquinho. Seu Vilela respondeu, afável:
"Aí a gente entrega as aves que não podem mais voar para
criadouros registrados aqui no Ibama e elas ficam cuidadas, servindo para reprodução,
para educação ambiental e pesquisas científicas".
Marquinho, impressionado e marcado para sempre com tudo o que viu e viveu em
dois dias, ainda por cima recebeu a notícia de que o pássaro preto
com azul, ferido no cerol da linha de sua pipa, havia morrido na véspera.
Voltou arrasado para casa, onde, na hora do almoço disse para a mãe:
"Quando eu crescer quero ser biólogo ou veterinário".
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