A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Pipa com cerol

(Artur da Távola)

Marquinho alegre e excitado, saltava de emoção enquanto sua pipa com cerol na linha, disputava com outra, vinda de um terreno baldio distante. Puxa daqui, leva para o lado, dá linha, tira. Ele era o melhor levantador de pipa do local. O imemorial sentido da luta e da disputa no ser humano atuava dentro dele, um garoto de bom coração. Nisso, um belo pássaro negro com marcas azuis no vôo veloz esbarra na linha de sua pandorga e em seguida cai, vertiginoso, quase na vertical. Por coincidência vem se esborrachar no jardim da casa do Seu Jonir Moraes, uma pessoa bondosa que deixava a garotada brincar e facilitava as coisas. Recolhe a pipa já sem o gosto da disputa com outros garotos e diz para si mesmo ser a segunda vez que isso acontece. Na primeira não falou para ninguém e não achou onde caiu o urubu dilacerado pelo cerol.

Marquinho adorava bicho, fosse urubu, minhoca ou colibri. Com três amigos correu até o portão de seu Jonir, tocou a campainha e pediu para pegar um passarinho que estava caído no jardim. Seu Jonir abriu e suavemente como era de seu estilo, censurou-o: "Logo você, Marquinho, um menino tão bom, alvejando passarinho?" "Não seu Jonir,..." e contou o acontecido.

A ave, cortada pelo cerol, sangrava, arfava, entregue àquelas mãos gigantes (para ela) que buscaram água oxigenada e tentaram estancar a sangueira. Marquinho, a ponto de chorar, não sabia o que fazer. A sorte foi passar por ali um jornalista do bairro, João Carlos Pedroso, que sendo uma pessoa bem informada, disse que aquilo era comum nas férias quando a criançada solta muita pipa com cerol. E indicou-lhes o caminho: "Corram para o Ibama!"

"O Ibama? Lá não é veterinário", disse seu Jonir, já solidário com a ave e as crianças mas sabia que o jornalista, também vizinho, era homem de respeito. Disse Pedroso: "Liguem pro Ibama e perguntem onde é o CETAS que é o Centro de Triagem de Animais Silvestres. Lá eles recebem pássaros cortados pelo cerol: até corujas, urubu e gavião carcará, são mutilados pelo cerol. Alguns morrem na hora. Lá no jornal já fizemos uma reportagem sobre isso".

Quando chegaram ao Cetas do Ibama, o pássaro parecia estar em agonia. Um senhor Vilela, muito amável disse-lhes para deixar a ave lá que fariam o possível. Dia seguinte, Marquinho não agüentou a aflição e culpa, pediu à mãe para levá-lo lá. Ela podia. Ali ele soube que "somente dez por cento das aves cortadas pelo cerol das linhas de pipa, são levadas para o Ibama. As outras, quando não morrem ficam pelo chão para sempre, por impossibilidade de voar. Acabam sendo comidas por algum predador. O drama das aves tratadas no Ibama é que algumas levam tempo para se curar e engordam demais, perdendo assim condições para o seu habitat natural".

"E aí?, perguntou Marquinho. Seu Vilela respondeu, afável: "Aí a gente entrega as aves que não podem mais voar para criadouros registrados aqui no Ibama e elas ficam cuidadas, servindo para reprodução, para educação ambiental e pesquisas científicas".

Marquinho, impressionado e marcado para sempre com tudo o que viu e viveu em dois dias, ainda por cima recebeu a notícia de que o pássaro preto com azul, ferido no cerol da linha de sua pipa, havia morrido na véspera.

Voltou arrasado para casa, onde, na hora do almoço disse para a mãe: "Quando eu crescer quero ser biólogo ou veterinário".

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