A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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E a professora explodiu

(Artur da Távola)

Chovia e trovejava. Umidade. A professora voltava para casa, os pés e o agasalho de malha ensopados, duas matrículas no ensino médio, mestrado feito há anos enquanto estava grávida e solteira; amores fracassados, estudiosa, culta, Bonita, ainda, mas feia porque desistira da beleza, um mínimo e um mísero apartamento na Tijuca, na direção dos tiroteios num dos quais a bala perdida matou seu único filho, enfim ela estava exausta exangue e entregue.

Saltou do ônibus, andou uns quarenta metros e.... explodiu. Sim, explodiu, como uma granada. BUM. Carne, sangue e ossos para todos os lados. Mas..... o milagre: de dentro da explosão emergiu um aluvião de margaridas, e mais: algodão de açúcar, mel, papiros escritos, um romance jamais publicado que guardava num caderno, retratos de família, nuvens de céu cor de rosa travesseiros e cobertores deliciosos, com o aroma de alecrim impregnando o ar. Em volta, pessoas atônitas. O que era: atentado ou milagre? De um lado sangue ossos e carne espalhados e do meio da sangueira surgiam milagres e bênçãos. Apareceram poentes deslumbrantes, óculos de ver alma, uma enfermeira quase santa, uma sabiá, muitos livros com poemas, os outros filhos que não teve, lindos e salvadores, o rosto do Chico Buarque, tâmaras, doces árabes cristalizados, bibliotecas do espaço, espíritos desencarnados de seus poetas prediletos e de pessoas benfazejas, uma ex-aluna sua que a vida escondera dela mesma, gramados ingleses, pés de pitanga e carambola, frutas adoradas na infância, um poema de Cecília Meirelles, os quinze netos que não teve e uma deliciosa xícara de café com leite, das grandes, para nela afundar o biscoito de maisena da infância. Viu-se também o rosto forte de seu avô sírio. De repente um clarão: emerge o retrato gigante, todo iluminado, do filho morto, redivivo, a conversar com ela assuntos amenos a contar histórias do seu Flamengo, e vários deuses e heróis da Grécia antiga.

Surgiu, também do âmago da explosão uma daquelas pontes pequeninas da Holanda, repleta de flores sobre um riacho e, logo depois, centenas de imagens da cidade de Bruges, na Bélgica, projetadas em tamanho grande nas nuvens. Ah... saltaram de dentro dela, alguns felinos grandes que tornaram claro porque era ela a exata mistura de santa com leoa a cuidar dos filhos que não teve. E começou a chover não mais chuva mas novenas. E brilharam patenas douradas, hóstias milagrosas, orações redentoras, missais. Uma voz grave mas mansa e invisível recitou Salmos da Bíblia, enquanto o pai dela apareceu a conversar com aquele seu namorado da juventude. Ao fundo, ouvia-se a Ave Maria de Schubert.

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