Chovia e trovejava. Umidade. A professora voltava para casa, os pés
e o agasalho de malha ensopados, duas matrículas no ensino médio,
mestrado feito há anos enquanto estava grávida e solteira; amores
fracassados, estudiosa, culta, Bonita, ainda, mas feia porque desistira da beleza,
um mínimo e um mísero apartamento na Tijuca, na direção
dos tiroteios num dos quais a bala perdida matou seu único filho, enfim
ela estava exausta exangue e entregue.
Saltou do ônibus, andou uns quarenta metros e.... explodiu. Sim, explodiu,
como uma granada. BUM. Carne, sangue e ossos para todos os lados. Mas..... o
milagre: de dentro da explosão emergiu um aluvião de margaridas,
e mais: algodão de açúcar, mel, papiros escritos, um romance
jamais publicado que guardava num caderno, retratos de família, nuvens
de céu cor de rosa travesseiros e cobertores deliciosos, com o aroma
de alecrim impregnando o ar. Em volta, pessoas atônitas. O que era: atentado
ou milagre? De um lado sangue ossos e carne espalhados e do meio da sangueira
surgiam milagres e bênçãos. Apareceram poentes deslumbrantes,
óculos de ver alma, uma enfermeira quase santa, uma sabiá, muitos
livros com poemas, os outros filhos que não teve, lindos e salvadores,
o rosto do Chico Buarque, tâmaras, doces árabes cristalizados,
bibliotecas do espaço, espíritos desencarnados de seus poetas
prediletos e de pessoas benfazejas, uma ex-aluna sua que a vida escondera dela
mesma, gramados ingleses, pés de pitanga e carambola, frutas adoradas
na infância, um poema de Cecília Meirelles, os quinze netos que
não teve e uma deliciosa xícara de café com leite, das
grandes, para nela afundar o biscoito de maisena da infância. Viu-se também
o rosto forte de seu avô sírio. De repente um clarão: emerge
o retrato gigante, todo iluminado, do filho morto, redivivo, a conversar com
ela assuntos amenos a contar histórias do seu Flamengo, e vários
deuses e heróis da Grécia antiga.
Surgiu, também do âmago da explosão uma daquelas pontes
pequeninas da Holanda, repleta de flores sobre um riacho e, logo depois, centenas
de imagens da cidade de Bruges, na Bélgica, projetadas em tamanho grande
nas nuvens. Ah... saltaram de dentro dela, alguns felinos grandes que tornaram
claro porque era ela a exata mistura de santa com leoa a cuidar dos filhos que
não teve. E começou a chover não mais chuva mas novenas.
E brilharam patenas douradas, hóstias milagrosas, orações
redentoras, missais. Uma voz grave mas mansa e invisível recitou Salmos
da Bíblia, enquanto o pai dela apareceu a conversar com aquele seu namorado
da juventude. Ao fundo, ouvia-se a Ave Maria de Schubert.
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