A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Cena dos anos 50

(Artur da Távola)

Chovia, e ele estava atrasado. Atravessou veloz a Raimundo Correia, escorregou, caiu sujou-se e esfolou o braço mas nada o impediria de ainda tentar a sessão das seis, na primeira vez em que conseguiria ficar a sós com Milana, ainda que no cinema. Vê, do outro lado da rua, esbaforido, a imagem da qual jamais se esqueceria. A porta do cinema ficara vazia. Lotado, ninguém mais entrava após a sessão começada. Não cabia. Milana, esguia, os belos cabelos ondulados e compridos soltos sobre o ombro, a roupa discreta (pudor que sempre teve), e escondia - e por isso mesmo revelava - seu belo corpo, sozinha, entre a marquise e a rua, debaixo da pequena sombrinha a esperá-lo. Chuvada!

Não acreditou. Havia pensado em tudo até chegar lá: que ela desistira de esperar; que nem veio ao encontro; que a mãe não a deixara sair sozinha, que a tormenta (a essa altura era um temporal daqueles de encher ruas); que a rigor não se interessava por ele, que era mais feio e o único que possuía era um caderno de versos no qual Milana disse haver talento, contrariando o parecer de um colega muito culto que lhe fizera duras críticas, daquelas desanimadoras.

Lá estava, respingada de chuva, assustada por estar só na rua àquela hora. Chega ele com pedidos de desculpa, o coração galopante, a dizer que o trânsito etc. Empapado de chuva da cabeça aos pés. Milana não devolveu qualquer palavra de reclamação, sentiu-se aliviada com a chegada, embora assustada com a proporção da chuva que já enchia a Avenida Copacabana. Ficaram naquela indecisão do coração aos pulos sem saber o que dizer até que num lance do qual jamais se julgaria capaz não fosse a emoção, segurou com decisão e vigor a mão dela que estava livre da sombrinha. Os dois calados, quase colados, sem saber o que dizer, viveram quinze minutos de só silêncio. Milana repousou a cabeça no ombro dele e sempre em silêncio os dois viram a chuva aumentar, a água a subir a calçada, os pés encharcados, ela sem saber o que diria em casa e ambos a ignorar como retornar. Então começam a rir e a rir sem parar. Rir de tudo: do que não foi falado, dele empapado, da descoberta do amor possível, de não saberem o que fazer e de se manterem calados, apenas mão na mão e um riso saboroso, desses que só surgem em momentos de amor, a fazer alegria do que parecia ser um problemão.

Depois, por motivos vários, o namoro não prosperou mas ambos até a morte se lembravam daquele dia. Separados no tempo e no espaço, um nunca soube que o outro jamais esqueceu a cena.

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