A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O primeiro salário do craque

(Artur da Távola)

Alegria para o casebre em Vigário Geral, era o que levava naquele anoitecer. No quarto dormiam mais cinco irmãos, empilhados. Era uma rua daquelas afastadas, sem calçamento, lama em dias de chuva, convivência desde criança com as ratazanas às quais aprendera a chutar, desde que ganhara um sapato de sola de pneu, ideal para as peladas da rua, para chuva, sol, passeio e dia de missa, o único.

A mãe já velha, apesar de só 52 anos. Magrinha e chupada, sempre com tosse, pano na cabeça, ar cansado e bom. Só a via uma vez por semana, no dia da folga da casa da patroa. O pai só conhecera violento, quando garoto. Lembrava dele bêbado, dando pancada e fazendo filho. Ouvia os roncos da relação sexual dele com a mãe. Depois, sumiu, e nunca mais do pai se falou, salvo uma vez quando um primo ouviu dizer que morrera baleado em birosca da Rocinha, muito longe. Vendia refrigerantes na praia e se amigou com uma tal de Geralda. Ninguém sabia ao certo.

Aquele era dia diferente. Voltou pela mesma rua. Chovia, tarde de melodia de marcha-rancho. Molhou a roupa sonhando com uma nova. Nada comprou, mas teve vontade de gastar tudo no supermercado, onde chegara a trabalhar como carregador aos 14 anos. Queria gastar e levar alguma agrado para a mãe, além de chegar em casa carregado de sucrilhos para os irmãos. Sabia o valor do dinheirinho que levava no bolso. Até temeu um assalto, mesmo ele que conhecia toda a bandidagem da região, pois jogava em dias de folga no time deles, era o cobrão.

O enorme viaduto cheio de fumaça e barulho parecia-lhe alegre. Lá para dentro, os camelôs com ofertas, o cheiro de churrasquinho. Comeu um, odor melhor que o gosto, aprendeu. Não quis mais gastar. Ficou com vontade de cantar, de passar pela quadra da Escola de Samba do Grupo de acesso e tomar cerveja gelada com a patota, era verão brabo mas se lembrou de que naquela hora não deveria haver ninguém, todos correndo atrás do prejuízo. Era um futuro craque de futebol. Imaginou-se no Barcelona.

Ninguém para testemunhar. Ele, a mais feliz das pessoas. Passara por cima de tudo, treinara no Vasco. Foi subindo. Embora reserva, já estava na lista dos profissionais. Era o menino pobre caindo de emoção com o primeiro salário querendo levá-lo inteirinho para a mãe amiga.

Imaginou a alegria dela. Agora a vida ia endireitar. Fizera dois gols no treino.

Foi recebido pela vizinha, espantada:

"- Então tu não sabe ? Tua mãe morreu. Teu pai não tinha morrido. Taí vivo, o cão, o filho da mãe. Chegou aqui bêbado, armou a maior quizumba e deu duas estocadas nela. A patrulha ta atrás dele !".

O primeiro salário ajudou a pagar o modesto enterro da mãe acompanhado por doze pessoas e um cão. Chovia. A manhã doía.

Lá no clube nunca se entendeu porque ele era tão calado nem porque um ano depois já estava alcoólatra e foi dispensado, mesmo jogando muita bola.

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