A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

A freirinha

(Artur da Távola)

Raramente se vêem freiras vestidas com aquele hábito antigo. Hoje é saia e blusa estilo moderninho, sei lá: acho justo e confortável, mas me parecem, assim, menos freira. Por isso o espanto, dia desses, ao descer a Rua Faro, ver uma freira com aquele pano branco na cabeça e o hábito marrom. Não sei ao certo mas o hábito marrom nas ordens religiosas tem a ver com uma certa hierarquia interna. Os Franciscanos antigamente vestiam também, hábitos marrons. Padre de calça comprida é menos simbólico.

Não é este, porém o assunto da crônica e sim o mistério que desafia o cronista encapsulado na dúvida sobre o que estaria aquela mulher de uns cinqüenta anos, a pensar. Ou a carregar consigo naquela tarde esquecida do tempo na Rua Faro. Vinha circunspeta, com o pudor comovente das freiras de verdade. Imaginei primeiro ser seu pensamento em como compraria presentes de Natal para os meninos e meninas nos estabelecimento de sua ordem. Depois fui mais cruel: imaginei-lhe crises de fé, comuns a religiosos de todos os credos. Instantes de perda de confiança na eternidade, nas vantagens do bem após a morte, no cansaço milenar de pregar o Cristo para gente que diz aceitá-lo porém na prática e no comportamento o renegam com hipocrisia,

Ou será que pensaria, inocentemente em estado de infância espiritual no paraíso e num descanso profundo do qual sairia para um viver gozoso na contemplação da Divindade e o desvendar esplendoroso do esmagador mistério existencial que nos aterra e desafia. Cria, sim, na vida eterna. Porém como concebê--la imaginá-la e talvez querer logo partir para ela?

Lá vai a freira de hábito marrom. Estará a orar em silêncio, impregnada da luz cósmica que intui ou simplesmente olha com pena os apelo da carne aos quais renunciou. O pensamento se lhe atropela; lembra desde o menino do qual gostou em criança e do qual jamais se esqueceu, até a grandeza de estar a viver a humildade cristã, no serviço a Deus, nas renúncias que se impôs.

Lá vai a freirinha de hábito antigo marrom, cabeça coberta pelo pano branco imaculado e durinho de goma. Nem imagina que um cronista maluco a vê passar, emocionado com sua vida á qual não conhece e se mete a invadi-la com considerações leigas de um reles pecador.

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente