A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Sivuca, São Pedro e o O Xaxado

(Artur da Távola)

Sivuca da Paraíba. Sivuca que era Severino. Sivuca da Glorinha Gadelha sua mulher dedicada e parceira no genial "Feira de Mangaio". Sivuca albino, nordestino e deslumbrante como Hermeto Pascoal este outro bruxo de descomunal talento e a simpatia maior de todas as Américas, Europa, África e Oceania capaz de tirar som até do dedão do pé se não cortar a unha. Sivuca também da Europa, para onde excursionou com sua sanfona com 27 anos numa caravana de divulgação da música brasileira, numa antiga e maravilhosa iniciativa de Humberto Teixeira que nunca mais foi repetida.

Sivuca que em certa fase descobriu um som entre garganta e lábios que somava ao da sanfona numa invenção formidável, inimitável. à qual depois abandonou. A mesma garganta que invadida por um câncer o levaria. Sivuca ritmo puro que sacudiu a Brasil, Europa, América e África. E para esta escreveu a imortal "Mãe África". Sivuca de quem o fossento e talentoso Miles Davies, disse mais ou menos o seguinte: "você me fez pela primeira vez na vida amar o som do acordeão". Sivuca compositor do "João e Maria" na qual o Chico Buarque colocou letra e a Miúcha gravou, uma das mais delicadas canções de lembranças infantis jamais escritas no Brasil ("Agora eu era o herói e o meu cavalo só falava inglês. A noiva do caubói era você além das outras três")...

Sivuca que no auge da discriminação racial na África do Sul, foi descoberto pela então famosa Miriam Makeba porque conseguia na sanfona o ritmo de que ela necessitava e saiu com ela pelo mundo. Sivuca que tocou com Herry Belafonte. Sivuca que sofria pelo Brasil em fases de não reconhecimento de sua arte superior. Sivuca que no Clube do Choro de Brasília e em muitos lugares do Brasil de repente tocava Bach com perfeição para platéias populares deslumbradas com aquele som.

Sivuca o que sabia da existência de uma alma na sanfona (deixem-me chamar o acordeão de sanfona!) e do quanto ela sofria quando os mesmos intelectuais (que depois se transformaram em admiradores) esnobavam o instrumento de um Luís Gonzaga, no qual se inspirou. Sivuca, aluno do grande e esquecido Guerra Peixe, A mesma sanfona que tanto se prestava a um tango como ao toque sutil e lustroso do Chiquinho, o gaúcho que até o Radamés Gnatalli, com sua acuidade musical, o chamou para seu quinteto e sexteto. Sivuca que, com Orlando Silveira ajudou a gerar um Dominguinhos sensível e maravilhoso e a nova geração do Marcos Nimrichter ou a dos misteriosos sons do acordeão do Toninho Ferragutti, estes gente ainda pouco conhecida pois o rádio e a TV não divulgam o bom Brasil musical. Como sempre escondeu Sivuca.

Sim, Sivuca vivenciava de modo sonoro a existência de uma alma na sanfona e secretamente , sem nada dizer, sabia que esta alma era ele mesmo. O Brasil vai ficar sem mais um grande músico popular.

E São Pedro já caiu no xaxado. Meio encabulado, porém não resistiu.

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