A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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A morte da filha de Pelé

(Artur da Távola)

Não sou juiz de pessoas. Cada ser humano tem direito a seu mistério e à sua subjetividade. Por isso, não escrevo para julgar o Pelé, como tenho lido fartamente por aí.

Quero apenas traduzir um sentimento especial que me dominou, quando soube da morte de sua filha, em Santos, precoce, por câncer fulminante. Sempre que a vi na televisão, impressionou-me a semelhança com o pai e com os traços de Pelé atenuados e arredondados. Pelé tem olhos mongólicos. Ela os possuía redondos, tristes e belos. Pelé é e está sempre a sorrir, devolvendo à vida o que esta lhe deu em milagre e dádivas. Essa moça, não. Apesar de bonita de rosto, padecia de uma solidão adivinhada, precisou do exame do DNA para ser reconhecida como filha, o pai nunca ou quase nunca a visitou. E mandou uma coroa a seu enterro. Não compareceu (compadeceu?)

Há mistérios empáticos entre os seres humanos. No rosto daquela quase menina, como diz o samba do Sérgio Bittencourt sobre seu pai Jacob do Bandolim, ficou "a saudade dele a doer em mim". Desconheço causas, intimidades, pormenores da vida dela. E as razões do pai. Apenas sei que havia sido reeleita Vereadora, o que já é sinal de trabalho aprovado.

Como vivem as pessoas que procuram um pai ou a mãe por toda uma vida? Digo-o por mim. Meu pai não me abandonou. Ao contrário, amava-me profundamente. Porém morreu quando eu tinha recém feito onze anos de idade. Entrei na puberdade, adolescência, juventude, na vida, sem pai. Um dia, muitos anos depois, li em Freud que a perda de um pai nesta fase constitui-se em irreparável tragédia. Por sorte, minha mãe soube ser "mãepai". Mas a verdade é que, aos setenta anos, ainda procuro meu pai nas dobras da memória, nos esconderijos do Mistério. E, desde rapaz, sempre selecionei inconscientemente alguns pais optativos nas pessoas com quem convivi, admirei e muito me influenciaram: Anísio Teixeira, Marcial Dias Pequeno, Dr. Américo Piquet Carneiro, Orizon Carneiro Muniz, Dr. Pedro Figueiredo Ferreira, Dr. Domício de Arruda Câmara, meu tio Geraldo Moretzsohn e meus outros tios Mario Gonçalves Ramos e Willy Koff. Sem falar em dezenas de escritores. Suspendo as menções, pois levaria a crônica inteira a citar nomes, mas sempre gente mais velha constituiu o meu rol de admirações filiais.

Acalento e acalanto em minha empatia a solidão desta moça a quem o pai (por motivos que só ele deve saber) jamais a quis como filha. E sinto a sua dor como se minha fosse. Corrói saber de uma solidão cósmica e irreparável.

É... acho que Freud tinha razão: perder um pai desde cedo, ou nunca tê-lo, é a dor de uma tragédia existencial que se leva para o túmulo. Em vida, jamais desaparece. Quem souber responder de modo cabal a este sortilégio do destino, por favor, cartas para o endereço de meu site publicado logo aqui abaixo. E, desde já, agradeço a iluminação que vier a receber.

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