A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Delirando em voz alta

(Artur da Távola)

Quando Bangladesh foi destruída, o que depois permitiu a reconstrução da rede de águas e esgotos foram as plantas arquivadas por empresas particulares. Poucos sabem que os estudos e projetos para uma ponte Rio-Niterói em 1872 ajudaram quase cem anos depois a conhecer a evolução das águas da Baía de Guanabara.

Arquivo é matéria viva, de direto interesse da comunidade. Está na linha da preservação patrimonial de um povo, cidade ou país, conceito cada vez mais importante devido à fúria destrutiva da sociedade industrial, fúria esta que apaga não apenas documentos, mas prédios, construções, árvores, campos, montanhas, águas dos rios e dos mares, pássaros, a vida, enfim.

Gostaria de criar na sede do Arquivo Nacional (agora reformado, lindíssimo e que dá audições culturais de primeira qualidade ali na Praça da República, ao lado da Rádio MEC) gostaria de criar, repito, uma seção subjetiva para arquivar momentos de verdades da vida da gente. Ali duraria aquele sorriso que nos revelou afeto; seria arquivado o susto e o silêncio retumbante que antecede a todo primeiro beijo. Nele seria guardada para sempre a sensação de proteção do filho que chega do colégio novo ganhando o abraço da mãe. E arquivadas também seriam todas as gratidões que não tiveram testemunha. Ali teríamos o registro daquela visita exata na hora da aflição, ou então de alguma carta escondida a falar do amor maior, seria o território guardião, também de momentos excepcionais, inesquecíveis e até inexplicáveis de nossa vida.

Neste arquivo ficaria -como exemplo a não ser seguido pelos que vierem depois de nós- tudo o que nos infiltraram de medo real da guerra atômica, do assalto violento, das barbaridades perpetradas pela indústria armamentista ou a hipocrisia que nossa, de origem e nascimento nunca foi, e, isto sim, é a tentativa dos sistemas de fazer-nos não o que somos mas que ele necessita que sejamos, para ter mão de obra à sua feição ou escravos (ignorantes da própria escravidão) de suas idéias ou ditames.

Além disso, nesse arquivo poético preservaríamos o verdadeiro eu, os instantes de confidência e os segredos que a vida não permitiu contar. Seria a manutenção em um arquivo vivo, dos instantes sacramentais e da libertação de aderências inoportunas do eu humano. Todas ficariam arquivadas naquela seção, se lá me deixassem instalar um arquivo de vivências emotivas.

Sim, salve o trabalho notável dos arquivistas do Brasil e do mundo! É inestimável e silencioso serviço de valor histórico. Mas que bom seria se houvesse também, como ora proponho, a guarda de verdades emotivas da vida da gente, e momentos pessoais e intransferíveis que só duram o tempo da nossa precária memória pessoal. E quase sempre não temos a quem contar ou não queremos ou não podemos contar.

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