A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Tudo não cabe

(Artur da Távola)

Um dos grandes dramas do ser humano é este: todas as vidas que a gente tem não cabem em toda a nossa vida.

Quanto mais complexo o ser humano, maior a impossibilidade de conciliar internamente, e/ou de viver as várias vidas existentes.

Pessoas há que, para dar vazão às vidas que latejam dentro, partem para a arte, a política, o sacerdócio com grande mérito e muita renúncia. Nesse sentido, a arte, por exemplo, é puro processo de criação, porque permite virem à tona sob a forma simbólica, a existência das várias vidas que - paralelas- vivemos internamente. Escrever, pintar, representar, poetar, musicar, cantar, orar, servir a Deus ou ao país, são a vazão que o artista dá a todas as vidas que tem e não cabem em toda a sua vida, porque esta vai sendo ocupada desde cedo com deveres e idéias que adotamos (ou nos fizeram adotar) e com os quais, de alguma forma, cimentamos compromissos, deveres, responsabilidades. O risco é a frustração. A vantagem é a seriedade e a dedicação a causas importantes

Outras pessoas, porém, há, que, em vez da forma artística citada, partem para viver todas as vidas que têm. Nada de representações das várias! Ainda que impossível vivê-las todas, é preciso tentar! Fazer o possível para viver o máximo de vidas possível. O risco é a esquizofrenia. As vantagens são a soltura, a alegria, o descompromisso.

As pessoas que tentam viver todas as vidas que têm, pela coragem, pelo desprendimento, pelo impulso de enfrentar o impossível, mesmo quando não merecem a adesão ou imitação do público, ganham-lhe o respeito ou a vaia. É que elas são capazes de sofrer para se exporem a tudo aquilo que embora seduzindo provoca natural temor no ser humano médio.

E o que é ter muitas vidas, as tantas que não cabem em toda a nossa vida?

É saber-se pouco diante do muito que se é capaz de sentir. É conseguir sair da trincheira existencial e tornar-se parte de outros mundos humanos, os quais se percorre com a alegria de criança em viagem. É ser múltiplo na unidade e desesperadamente procurar a unidade na multiplicidade sedutora e fugidia do mundo. Assim também é o amor: um rio de muitas vertentes. Acaba virando um Amazonas. Vocês já viram o pouco mais que um filete d'água onde nasce o Rio São Francisco?

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