Peço licença para falar na minha criança, a que mora aqui
dentro e não me abandonará jamais. Talvez com a morte eu até
regresse a ela. Os quase setenta anos que dela me separam não a removem.
Ela ali está, magra e tímida, a me olhar e ditar comportamentos
e reações.
Minha criança esteve em todos os meus filhos e aparece nos meus sete
netos. Ela se refaz da morte da irmã e abre os olhos para o mundo, com
a certeza de que veio ao mundo para alguma missão, embora sempre se considere
inferior ao tamanho da mesma. Minha criança sente enorme saudade de pai
e da mãe com quem o adulto já não conta salvo no exemplo,
na saudade e nas orações quando me domina uma fugidia sensação
de estarem, incorpóreos, a meu lado, mas sem se manifestarem.
Minha criança possui incomensuráveis solidões diante do
mistério do infinito. Ainda recua diante do violento, embora não
o tema, e ainda se infiltra em episódios de distração e
inocência inexplicáveis num homem com minha carga de vivências.
Minha criança ainda gosta de abraço caloroso, proteções
misteriosas e de um modo de rezar que o adulto nunca mais conseguiu tais a entrega
e a total confiança no Mistério e na proteção de
Deus.
Minha criança carrega o melhor de mim, é portadora de meu modo
triste de falar de coisas alegres e de algum susto misterioso sempre que se
lhe impõe alguma expectativa d enfermidade. Minha criança é
inteira, mansa, bondosa e linda. Eu a amo, preservo, e dou boas gargalhadas
quando a vejo infiltrar-se nas graves decisões de algumas de minhas responsabilidades
adultas. Ninguém a vê, salvo eu. Ninguém a acaricia, salvo
eu, que a estimo, procuro e admiro mais a cada dia e com quem converso histórias
infinitas, que somente a imaginação pode conceber no universo
maravilhoso da fabulação interior e solitária.
Diariamente passeio com minha criança e estou muito feliz por cumprimentá-la,
levar-lhe balas, nuvens, aquele cão da meninice, as canções
de minha mãe e os carinhos de meu pai, levar-lhe os presentes que ganhava
de meu padrinho e toda a enorme vontade de Ser que então adivinhava para
a minha vida. Vida que chegou, ameaça passar, e da qual não me
arrependo. Minha criança adivinhou em seus sonhos o adulto que eu queria
ser. E traz alegria e esperanças à minha idade atual. Hoje sou,
há muito tempo, o adulto que sonhei ser. Talvez com menos tensões,
mas igualzinho em meu modo de amar a vida.
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