Muito já se debateu sobre a existência - ou não - de uma
literatura catarinense. Há quem prefira falar de uma literatura feita
em Santa Catarina, há quem prefira negá-la, defendendo sua inclusão
no contexto da literatura brasileira. Afinal, não nos soa comum o termo
"literatura paulista" ou "literatura carioca", por exemplo.
Então, por que esta necessidade de classificarmos a produção
dos autores nascidos ou radicados em Santa Catarina como algo diferente daquilo
que se pratica nacionalmente? De nossa parte, agrado-nos falar de uma literatura
produzida a partir de Santa Catarina mas que se impõe, acima de tudo,
enquanto Literatura. Porque, para o texto que se pretende literário,
não há fronteiras geográficas; o desafio é, sempre,
o de transformar em "universal" o "particular", e vice-versa.
A introdução se justifica para explicarmos o que pretendemos neste
espaço: discutir e apresentar livros e autores que falam a partir de
Santa Catarina, ou porque nasceram neste estado, ou porque neste se radicaram.
Assim, esperamos contribuir na desmistificação da tese de que
não existe qualidade ou relevância naquilo que escrevem e publicam
os autores catarinenses. Há muita coisa ruim, é verdade, mas também
é verdade que há muita coisa boa, livros que nada deixam a desejar
à Literatura (esta mesma, com L maiúsculo), como é o caso
do romance "Nur na Escuridão", de Salim Miguel.
Nascido no Líbano em 1924, Salim Miguel chegou ao Brasil ainda criança.
Depois de viver sua adolescência no município catarinense de Biguaçu,
mudou-se para Florianópolis onde, nas décadas de 1940 e 50, integrou
o movimento modernista nas artes catarinenses: o Grupo Sul - sobre o significado
deste Grupo para a história das artes e da literatura precisaremos de
um capítulo à parte. Juntamente com sua esposa, a também
escritora Eglê Malheiros, Salim escreveu o roteiro do primeiro longa-metragem
catarinense, o filme "O Preço da Ilusão". Em 1965, depois
de ser preso pelo Regime Militar (experiência que conta no livro "Primeiro
de Abril: Narrativas da Cadeia"), mudou-se para o Rio de Janeiro, onde
editou a revista Ficção e trabalhou para a Editora Bloch. Retornou
para Santa Catarina em 1979. Jornalista renomado com passagem por diversos jornais
e revistas nacionais, dentre as quais está a extinta Manchete, Salim
Miguel dirigiu também a editora da Universidade Federal de Santa Catarina
e a Fundação Cultural Franklin Cascaes. É autor com mais
de 30 livros publicados, entre contos, crônicas, romances, depoimentos
e impressões de leitura, dos quais se destacam: "A Morte do Tenente
e Outras Mortes", "A Voz Submersa", "Nur na Escuridão",
"A Vida Breve de Sezefredo das Neves, poeta" (indicado para o Prêmio
Jabuti), "Mare Nostrum" e "Jornada com Rupert". Recebeu
o título de Doutor Honoris Causa pela UFSC e foi reconhecido como intelectual
do ano pela União Brasileira dos Escritores e Folha de S. Paulo, recebendo
o Troféu Juca Pato. Recentemente recebeu o prêmio Machado de Assis
pelo conjunto da obra, reconhecimento máximo conferido pela Academia
Brasileira de Letras.
Difícil indicar apenas um livro de Salim Miguel, cuja obra variada e
consistente, explora diferentes gêneros e, em alguns momentos, ousa o
experimentalismo, como no caso da novela "As Confissões Prematuras".
Entretanto, queremos sugerir aqui a leitura do romance "Nur na Escuridão",
cuja primeira edição veio à luz em 2004.
Em "Nur na Escuridão" (Nur, em árabe, significa luz),
Salim conta a história de uma família de imigrantes árabes
que emigra para o Brasil, na década de 1920, e depois se instala definitivamente
em Santa Catarina. Elementos autobiográficos do autor se misturam à
ficção, aspecto recorrente em suas obras, o que confere a este
romance um grande nível de dramaticidade e humanidade. Logo no primeiro
capítulo somos apresentados à angústia de um pai de família
libanês que desembarca com toda sua família e pertences no porto
do Rio de Janeiro, sem conhecer uma palavra de português ou qualquer outro
idioma que não fosse o árabe, desprovido de informações
sobre o Brasil e, no bolso, apenas um papel com o endereço incorreto
de um parente seu. O torvelinho de pessoas, a barreira da língua e da
cultura, os filhos, esposa e pertences espalhados na calçada e a indefinição
de um destino, dão a idéia das dificuldades que estes personagens
enfrentarão na construção de suas histórias em terras
catarinenses.
Ao abordar literariamente a imigração libanesa, Salim Miguel,
contribui com o aprofundamento do debate acerca da constituição
deste povo miscigenado, dá um caráter de novidade a uma literatura
que sempre teve nos elementos germânico, açoriano e italiano sua
principal matéria-prima e dialoga inteligentemente com a história
brasileira.
Vale a pena ler "Nur na Escuridão", um clássico nascido
das mãos e da criatividade deste líbano-biguaçuense.